12 fevereiro 2010

A Rainha da Beleza

O Matheus dizia que a avó dele era muito braba:
- Tem o canteiro das rosas mais lindas que já vi e não deixa eu tirar nem uma.
O Ivan, pai do Mateus, dizia que admirava a mãe: uma pessoa forte, uma lutadora.
A Luciana dizia da sogra: 
-Dona Ilti não descansa nunca.
Um dia fui apanhar o Matheus para passearmos, ele tinha cinco anos, já se havia despedido dos pais, muito contente por ir com a tia para a casa dos outros avós. 
Estávamos de saída e ele me pegou pela mão e puxou para o lado do galpão:
-Vem, quero que você diga oi para minha vó.
Atravessamos o pátio e entramos pelo vão aberto do celeiro, do outro lado localizamos a figura da mulher alta que conduzindo algumas vacas aproximava-se e com um cajado na mão colocou cada animal em uma báia onde tocos de cana de açúcar recém cortados entretinham os animais.
O clima era frio e úmido, a avó do Matheus calçava botas de borracha e usava um pesado casaco de lã e um lenço de seda desbotado cobria-lha todo o cabelo, por trás dos óculos de grandes e grossas lentes, sorriu a esquelética e gigantesca vovó:
-Boa tarde, dona Ilti, não descansa nunca?
-Que jeito? Agora vou ordenhar as vacas e depois alimentar os peixes, para páscoa têm que estar prontos...Mas não quer chegar um pouco, tomar um chimarrão? O Ivan e a Luciana acabaram de chegar, vá lá com eles que logo eu me junto a vocês.
-Não dona Ilti, estou com pressa, outra hora, quando a senhora estiver mais descansada. Quero falar sobre a história da Jackobina Maurer com a senhora, ela foi sua bisavó, não?
- Ah, sobre isso não sei de nada. Nada a declarar! Sorriu e me despachou.
Antes de entrar no carro com o Matheus farejei um pouco o vento. 
O ar puro do entardecer, o aroma das flores brancas do gengibre que cresciam ao lado do rio Padilha ardia nas narinas causando vertigem, ainda mais combinados com a visão da cordilheira de morros em volta, a beleza e a organização da propriedade rural de cultura diversificada dos avôs do Matheus; açudes, plantação de milho, área coberta com árvores novas - "madeira de lei para o futuro dos netos".
Dona Ilti e o marido cuidavam de tudo, de vez em quando contratavam um peão:
- Quando não vencemos o trabalho...
Dez anos se passaram.
No terceiro dia de 2009 eu descia a avenida Paraguaçu em direção ao mar com minha filha e o meu sobrinho, o Matheus. Ele me puxou pela mão  excitado ao ver um casalzinho em um restaurante: 
-Venha dizer oi para a vó Ilti!
Olhei para os lados e não localizei a vó Ilti, mas o Matheus já estava abraçado a um casal que levantara-se de uma mesinha ao ar livre onde tomavam shopp.
A avó Ilti agora era uma mulher cheia de curvas e bronzeada com shorts curtos e estava abraçada a um senhor...que não era o avô do Matheus!
Sorri o quanto meu queixo caído permitiu e sob aquele cabelo escovado, a face radiante da maquiada e sorridente avó do Matheus combinou comigo um happy hour para o dia seguinte: Tenho muita coisa para te contar, Giane!
-Ah, eu também. vó...digo Ilti.
Ilti Hatzemberguer apareceu com o álbum de fotografias em baixo do braço.
Cumprimentamo-nos e não foi preciso muita introdução, perguntei:
- Como...tudo isso?
-Bom... me aposentei, vendemos um tanto do mato de reflorestamento e compramos esta casinha na praia. 
Alugamos o sítio e eu encontrei um grupo de amigos no clube da melhor idade. Todos os dias tem alguma atividade. 
Quando comecei a frequentar o grupo, logo me convidaram para concorrer a Rainha da Primavera, pelo Clube SABAL. Surpreendentemente venci, isso foi em setembro. Eu levei o convite na esportiva, fiquei perplexa por ter vencido. Meu marido sempre me dizia que eu era muito feia.
Ele não gostou que eu tenha vencido. 
Então me chamaram para concorrer para Rainha da Beleza da Melhor Idade do litoral norte do Rio Grande do Sul - isso foi em outubro, foi em Arroio do Sal, eu aceitei. 
A turma estava muito motivada e fomos em comitiva, eu fui pela brincadeira, mas lá, competindo com dezenas de candidatas, venci novamente!
-E o seu marido?
-Parece que não gostou. Um dia cheguei em casa e ele estava com as malas feitas para voltar para o sítio. Disse que ia viver com uma vizinha. 
Perguntei se estava certo da decisão, ele respondeu que sim, afinal, já tinham um caso há trinta anos.
-E você, o que disse?
-Nada. Não disse nada. 
Eu é que tirava os fios do cabelo pixaim da mulata dele quando eu lavava as roupas depois que voltava da casa dela. 
Um dia, quando os meninos eram pequenos, meu filho me levou até o caminho batido que ele encontrou no meio da plantação, por onde o pai ia até a casa dela, todos os dias depois do almoço. 
Trinta anos...
-Porque você deixou passar?
Mas eu tinha filhos pequenos e ele sempre foi muito brabo, nas brigas ele atingia minha auto-estima. Dizia que eu não era nada sem ele. E eu abracei o trabalho frenético como fuga, nas piores horas eu me dizia “Calma Ilti”. 
Mas eu pensava que a vida era só o que eu conhecia no interior, eu casei muito cedo e nunca saí de lá.
-Hoje, qual sua rotina?
-Pela manhã, a primeira coisa que faço é tomar banho e colocar bobs no cabelo, depois começo minha maquiagem, faço uma refeição leve e vou para o clube, três vezes por semana tem baile de tarde. Nunca durmo tarde e não vou à praia para não pegar sol, minhas caminhadas à beira mar são a tardinha. Quando não tem baile eu passeio com minhas amigas, adoro ir ao shopping, adoro!
Tenho muitas amigas e boa saúde. Todos dizem que têm que se arrumar melhor quando saem passear comigo.
-E o Namorado?
-Fernando? Conheço ele há cinco anos. Mas estamos namorando há um ano e oito meses. Quando o conheci e me apaixonei, eu achava que isso nunca aconteceria comigo, foi aí que comecei me estimular a superar os meus traumas. Desde que o vi, quando o vi a primeira vez, me apaixonei.
-Você gostaria de dizer alguma coisa para quem enfrenta problemas parecidos com os que você teve?
-Que ninguém que esteja vivendo uma crise se desespere pensando que a vida terminou, porque com certeza dias melhores virão.
Eu mesma...nem acredito...tudo o que passei, e hoje lembro sorrindo.
-E sobre a Jackobina Maurer e a batalha dos Mucker’s?
-Ah, nãããõ, não quero falar nisso! 
Põe ai, na-da a de-cla-rar.

RS 03.01.09

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