22 fevereiro 2010

Por onde anda Madame Butterfly?

O jornal da cidade traz hoje em um quadro pequeno a notícia de que foi encontrado morto perto da estação ferroviária um engenheiro florestal. 
 Ao lado do corpo havia uma garrafa de aguardente e duas cartelas vazias de medicamentos diferentes.
Com o jornal aberto nas mãos, ao ler a manchete passou pelos meus braços aquela moleza que me dá quando sou informada de que alguém que andava tentando morrer, conquistou o êxito pelo qual labutou.
Em outro tempo, noutra vida, conheci um engenheiro florestal. Conheci-o logo após ele ter perdido a filha de doze anos em um acidente de carro, não sei se já bebia antes da tragédia. Falava em retomar a profissão de engenheiro ou reunir sua antiga banda e voltar a tocar, eu sentia que ele não acreditava em suas palavras, mas analisava o contexto e tinha certeza que era só ele dar o primeiro passo e conseguiria.
Que mistério, que enigma que a pessoa sonhe querer, mas realmente não queira! 
Narrava histórias da época em que havia feito sucesso com uma banda de rock, e os amigos antigos testemunhavam seu talento.
Mesmo viciado na bebida - a desconstrutora de personalidades - transparecia potencialidades para refazer o seu espaço no mundo.
Deus seja louvado, que material interessante! 
Como o Homem é rico, e que capacidade esplêndida, esta da regeneração, desde a celular...
Nunca soube sua idade, era impossível adivinhar. Considerando-se um artista, optou pela aparência teatral, achava obrigatório andar maquiado, empoado, noite e dia, por isso, como bons Vikings, o chamávamos de Madame Butterfly. 
Os danos causados pelo alcool, se haviam, foram preenchidas pela vaidade, e ele era belo.
Foi músico, formou-se como engenheiro florestal.
Nas noites de quinta-feira, encontrávamo-nos, arquitetos, estilistas, profissionais da comunicação, gente de todas as cores e credos, o grupo do mundo, ouvíamos música, jogávamos conversa fora e nos hermanavamos em declarações sonhadoras e tiros para lua.
O lugar se chamava Glasnost e era uma segunda casa para qualquer um do grupo. A casa era uma mãe. A mãe dos artistas grandes da cidade pequena, e o Ceará, o garçom do grupo, era um filósofo residente e amado, eu era a menor e ele me dava coquetel de abacaxi sem alcool, eu sabia e apreciava o carinho e a esperteza.
Depois de uma vodka a mais, todos planejavam construir um castelo de areia maior do que o do outro, a minha era aguada, mas nunca precisei de vodka para sonhar mesmo...e eram sonhos sempre maiores do que a cidade poderia comportar, e estar com ele, o engenheiro florestal indignado nas noites de quinta era como ter uma audiência com a razão, mantinha o pé cravado no chão e sentenciava:
- Falácia! Vocês acham que é fácil? Eu duvido que tu, tu também - botava o dedo em riste na cara do condenado da vez - que qualquer um de vocês consiga, espalhava os dedos em maldição.
Desancava um a um, todos e sempre.
E nós, dóceis nos entregávamos aos seus ouvidos negativistas – era o nosso advogado do diabo, transmitia os avisos do duro mundo aos arautos dos anjos, e assim ajustávamos nosso equipamento de vôo para evitar colisões com o concreto. 
Pelo menos eu queria crer que a coisa era assim, e vá lá, para mim era. 
Com os olhos estrelados, expandidos de infinito em transes futuristas, contava-lhes que escalaria o Everest, que procuraria A Arca.
A voz da razão trovoava e aniquilava minhas expedições, arrasava minhas construções.
Declaro reconhecendo firma, após receber aquelas reguadas voltava para casa com os dedos inchados, achava que nem conseguiria mais trabalhar, amedrontada e culpada por ter ousado declarar espiritualidades e sonhos suaves em público. Adormecia pensando que era mesmo assim: tudo impossível...
Ainda bem que uma noite de sono sempre repõe nossa real natureza. 
Ao despertar apalpava-me sem abrir os olhos, avaliando o que sobrara ileso após os vaticínios do amigo, e sorria endiabrada, me sentindo porém, abençoada como se fosse um poeta que tivesse sido laureado com o Prêmio Jabuti, e sobre suas costas voasse sobre terras e mares apreciando a criação e as bençãos; constatava que continuava farta de sonhos, grande em energia e rica de imaginação.
Ter sonhos é vital, é o que nos impulsiona a seguir em frente, ter sempre um estoque de pequenos sonhos e alguns grandes e ser louco o bastante para acreditar mesmo nos mais difíceis de concretizar, ser surdo e não ouvir a voz da razão que nos diz para ficar plantados, enraizados na experiência alheia. Ser cabeçudo e continuar acreditando neles, até quando a própria mãe diz que não vamos conseguir realizá-los. Amar-se o bastante para saber que merecemos coisas boas...
Passaram-se vários anos, eita vida, que agora tenho mais sonhos, não esqueço dos antigos, e ainda lembro dos conselhos!
Meti meus pés pelas mãos, me envolvi em projetos grandes demais para o momento ou lugar em que os abracei... às vezes dá uma canseira!

Mas a noite vem e ao amanhecer os sonhos estão lá.
Basta esperar.
Dar-se tempo!
O maior sofrimento ainda é abrir o jornal e descobrir que alguém ficou perdido nas glórias ou problemas do passado,
sem olhos para enxergar o presente
e sem forças para desafiar o futuro.
Erechim/RS - 09.02.03.
No Link, Madama Butterfly -Tu piccolo Iddio:
http://www.youtube.com/watch?v=spI0ZT4DoAI

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