29 maio 2013

Mafalda - da primeira à última tira

O criador de Mafalda, Quino, deu uma entrevista para a Maruja Torres, que a Martins Fontes publicou. O livro "Toda Mafalda - da primeira à última tira", é uma edição lindamente encadernada com capa dura. 
Selecionei alguns trechos saborosos das declarações do genial desenhista argentino, autor das tiradas universais:
"Quando estou em casa, trabalho todos os dias. Mas no ano passado, com tantas viagens, não tive tempo de fazer quase nada. Mas é claro que ir a lugares novos, conhecer outras pessoas, deixa um sedimento que é útil para o futuro...Quanto à dificuldade, sim, criar é um processo difícil para mim, é um problema pessoal, sempre foi, com a Mafalda e com outro tipo de humor, Apago muito e implico muito.
...
Se não for apoiada por um bom desenho, a melhor ideia pode acabar se perdendo.
esta oposição entre texto e imagem foi um dos grandes traumas, já desde o início. eu achava que a ideia era primordial, e continuo achando, e isso me condicionava a desenhar. Por isso o fazia tão mal.
...
Desde pequeno estava muito claro para mim que eu ia ser ou desenhista ou nada. De modo que nunca tive dúvidas nem pensei em deixar o desenho para me dedicar a outra coisa. Os únicos problemas foram do tipo técnico, de corrigir erros.
...O que é mais importante para Quino?
Responde:
Não sei, não tenho ideia. A liberdade - ele insiste, teimoso. -Bem, posso acrescentar esse outro tipo de liberdade que a pessoa concede a si mesma, além daquela que tem de ser dada pelos outros. fico intrigado em ver que nos meus sonhos tenho uma imaginação fabulosa  e uma liberdade de movimentos que não tenho quando estou acordado. esse tipo de liberdade também é indispensável: a pessoa não deve se autobloquear com preconceitos e coisas que a inibem. 
Mas o autobloqueio existe, pelo menos no campo da criação. Quando desenho, eu me auto-censuro, porque, além do mais, já sei que se eu apresentar certas coisas nesta ou naquela revista elas não serão publicadas, então, para que perder tempo e energias? -Além disso é fácil fazer humorismo com coisas que beiram o censurável. é muito fácil meter-se com o militarismo ou com o clericalismo. Mas o importante é que a ideia seja boa, se for, o que importa que seja política, de humor negro ou de humor cor-de-rosa? A gente acha que nestas alturas já não cabe fazer a piada do naufrago na ilha, mas, se ela for boa, vai funcionar do mesmo jeito."

09 maio 2013

Todos os dias são das Mães



No início da semana fui pegar o presente para a mãe. Ao passar por uma loja na rua 25, vi na semana passada uma miniatura de máquina de costura com caixinha de música que toca Debussy: Clair de Lune: Será que ela vai gostar? Se o tempo é de vacas magras durma sobre a dúvida antes de comprar. 
Na segunda-feira voltei à região e com o coração apertado corri até a loja. Se não houvesse mais? Sabia agora que sim, que a mãe adoraria este pequeno mimo com muito carinho. Camille ontem o pôs no correio; e, mas então, voltando da loja passava pela Catedral da Sé. Subitamente fui pega pelo encantamento, estado de espírito que envolve feito cúpula. As pombas levantavam em revoada, as pessoas atarefadas preparando-se para engrenar um inverno, gentis sorriam. Alguns lugares fedendo a humanos que dormiram sujos por ali na noite anterior, substituindo humanos descartáveis dos anos anteriores, e o mundo passando. 
Sim, estou em São Paulo, e em alguns segundos voltei anos no tempo, até o final dos anos oitenta, na excursão que trouxe do rio Grande Sul, a turma do curso de Educação Artística da FIDENE, 
Inge e nós, suas alunas(eu, do atelier) com visita monitorada agendada para as catacumbas da Sé, 
Deixáramos o ônibus próximo ao Teatro Municipal onde curtíramos no meio-dia musical um espetáculo de violinos soberbo, e caminhávamos medrosos entre os pedintes e meninos portando bolsas plásticas cheirando cola, que puxavam nossas mangas pedindo esmolas. 
Muita coisa mudou e esse triste espetáculo já não é comum. Hoje moro em São Paulo, a Inge morreu, e aqueles dois filhos bebês que eu havia deixado no RS para vir estudar e conhecer São Paulo, Arte, Arquitetura, cresceram e estão casados e morando aqui. 
Um já me deu um neto.
Só quem não consegue enxergar é que se deprime ou é agressivo. 

Fotos: Maicon, meu filho mais velho, tatoo e editor de vídeo, com o meu neto Davi. Marcelo, incorporado em seu trabalho como aderecista e cosplayer, o Hellboy. Admiração de mãe e avó!

02 maio 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley


...Vamos ouvir isso um pouco mais alto.
Na extremidade da sala, um alto-falante sobressaia da parede. O Diretor foi até ele e apertou o botão.
"...se vestem de verde", disse uma voz suave, mas bem nítida, começando no meio de uma frase, 'e as crianças Deltas se vestem de caqui. oh,não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem ler e escrever. E, além disso se vestem de preto, que é uma cor horrível. Como sou feliz por ser Beta."
Houve uma pausa depois a voz recomeçou:
"As crianças Alfas vestem roupa cinzentas. Elas trabalham muito mais do que nós porque são formidavelmente inteligentes. Francamente estou contentíssimo de ser um Beta, porque não trabalho tanto. E, além disso,  nós somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são broncos. Eles se vestem de verde e as crianças Deltas se vestem de caqui. Oh, não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem..."
O Diretor repôs o interruptor na posição primitiva.
A voz calou-se. Apenas o seu tênue fantasma continuou a murmurar sob os oitenta travesseiros.
-Eles ouvirão isso repetido mais quarenta ou cinquenta vezes antes de acordarem; depois, outra vez na quinta-feira, e novamente no sábado. Cento e vinte vezes três vezes por semana durante trinta meses. Depois disso passarão a uma lição mais adiantada.
-A maior força moralizadora de todos os tempos.
Não exatamente como gotas de água, conquanto esta, na verdade, seja capaz de cavar buracos no granito mais duro; mas antes, como gotas de lacre derretido, gotas que aderem e se incorporam sobre aquilo que caem, até que, finalmente, a rocha não seja mais que uma rocha escarlate.
-Até que, finalmente, o espírito da criança seja essas coisas sugeridas, e que a soma dessas sugestões seja o espírito da criança. E não somente o espírito da criança. mas também o adulto por toda a vida. o espírito que julga, e deseja, e decide, constituído poer essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que sugerimos nós! - O Diretor quase gritou, em seu triunfo. - Que o Estado sugere. 
...
Num pequeno espaço gramado entre altas moitas de urzes mediterrâneas, duas crianças, um garoto de cerca de sete anos e uma menina que poderia ter um ano a mais, dedicavam-se muito gravemente, com toda atenção concentrada de sábios absortos em algum trabalho de descoberta, num jogo sexual rudimentar.
- encantador, encantador - repetiu sentimentalmente o D I C.
-Encantador - concordaram os estudantes, por cortesia. mas seus sorrisos eram um tanto condescendentes. Fazia muito pouco tempo que eles tinham posto de lado os folguedos infantis desta natureza, para que pudessem contemplá-los agora sem uma certa dose de desprezo. Encantador? Mas era apenas uma dupla de fedelhos brincando, nada mais. Fedelhos, simplesmente.
-Sempre tenho a impressão...-continuou o Diretor no mesmo tom levemente piegas, quando foi interrompido por um vigoroso hu, hu, hu.
De uma moita próxima saiu uma babá puxando pela mão um garotinho que berrava, Uma menina seguia-os com ar inquieto.
-Que há? -perguntou o Diretor.
A babá deu de ombros.
-Nada de mais - respondeu - é simplesmente este menino que parece pouco disposto a tomar parte nos jogos eróticos de costume. Eu já o tinha observado antes, uma ou duas vezes. E hoje recomeçou. Agora mesmo se pôs a berrar...
- Palavra de honra - interrompeu a menina, apreensiva - eu não tinha a intenção de machucá-lo nem coisa parecida. Palavra de honra.
- está claro que não, minha querida - disse a babá em tom tranquilizador. - De modo que - recomeçou, dirigindo-se novamente ao D I C - vou levá-lo ao Superintendente Adjunto de Psicologia. Só para ver se ele não tem nada de anormal.
-Muito bem - disse o Diretor. - Leve-o ao superintendente. Tu vais ficar aqui, pequena - acrescentou, enquanto a babá se afastava com o menino, que continuava a chorar - Como te chamas?
-Polly Trotsky.
-É um nome muito bonito, sim senhora - tormou o Diretor. -Agora raspa-te e vai ver se encontras outro garoto para brincar contigo.
A criança saiu a correr entre as moitas e logo desapareceu.
-Que criaturinha graciosa! -disse o Diretor.
seguindo-a com os olhos. Depois dirigindo-se aos estudantes:
-O que vou lhes contar agora poderá parecer inacreditável. 
Mas é que, quando não se tem o hábito da História, os fatos relativos ao passado, em geral, parecem mesmo incríveis.
Revelou a espantosa verdade. durante um período muito longo antes de Nosso Ford, e até no decurso de algumas gerações ulteriores, os brinquedos eróticos entre as crianças eram considerados anormais (houve uma gargalhada); e não somente anormais, mas positivamente imorais (não!); e eram, portanto, rigorosamente reprimidos.
A fisionomia de seus ouvintes tomou uma expressão de incredulidade espantada. O quê? As pobres crianças não tinham o direito de se divertir? Não podiam acreditar.
-E até mesmo os adolescentes - dizia o D I C  -os adolescentes como os senhores...
- Não é possível!
-Salvo um pouco de erotismo e homossexualidade às escondidas...absolutamente nada.
Nada?
-Na maioria dos casos até terem mais de vinte anos.
Vinte anos? ecoaram os estudantes, num ruidosos coro de ceticismo.
-Vinte anos - repetiu o Diretor - eu os preveni que achariam isso incrível.
...
Duas crianças tostadas como camarões saíram de uma moita próxima, contemplaram-nos um instante com os olhos arregalados de admiração, depois voltaram aos seus brinquedos entre a folhagem.
-Lembrem-se todos - disse o Administrador, com sua voz forte e profunda - lembram-se todos, suponho, daquelas belas e inspiradas palavras de Nosso Ford:
"A História é uma farsa." A História -repetiu pausadamente - é uma farsa.
Agitou a mão; e dir-se-ia que, com um invisível espanador, sacudia um pouco da poeira, e a poeira era Harappa, era Ur na Caldéia, algumas teias de aranha, que eram Tebas e Babilônia, Cnossos e Miscenas. Uma espanada, depois outra  - e onde estava Ulisses, onde estava Jó, onde estavam Júpiter, Gotama e Jesus? Uma espanada - e essas manchas de lama antiga que se chamavam Atenas e Roma, Jerusalém e o império do Meio - todas haviam desaparecido. Uma espanada - o lugar onde era a Itália ficou vazio. Uma espanada, mais uma - aniquilados o Rei Lear e os pensamentos de Pascal. Uma espanada  - desaparecida a Paixão; outra - morto o Requiém; mais outra - acabada a Sinfonia; mais outra...
- É por isso que não lhes ensinam História - dizia o Administrador. - Mas agora é chegado o momento...
O DI C olhou-o nervoso. Corriam rumores estranhos acerca de velhos livros proibidos, ocultos num cofre-forte do gabinete do Administrador. Bíblias, poesia -só mesmo Ford sabe o quê.
Mustafá Mond interceptou seu olhar preocupado e as comissuras de seus lábios vermelhos contraíram-se ironicamente.
-Tranquilize-se, Diretor - disse em tom de leve mofa - não vou corrompê-los.
O DIC ficou tremendamente encabulado.

Aqueles que se sentem desprezados fazem bem em ostentar um ar de desprezo.

-Procurem compreender -disse e sua voz causou-lhes um frêmito estranho na região do diafragma. - Procurem compreender o que significava  ter uma mãe vivípara.
Novamente aquela palavra obscena. Mas dessa vez nenhum deles pensou em sorrir.
-Procurem imaginar o que significava "viver no seio da família".
Eles tentaram imaginar; mas, evidentemente sem nenhum êxito.
-E sabem o que era um "lar?
Abanaram a cabeça.
- o lar, a casa, algumas peças exíguas, onde se apinhavam, de maneira sufocante, um homem, uma mulher periodicamente prolífica, um bando de maninos e meninas de todas as idades. Falta de ar, falta de espaço; uma prisão insuficientemente esterilizada; a obscuridade, a doença, os cheiros.
(A evocação feita pelo Administrador era tão vívida que um dos rapazes, mais sensível que os outros, só com a descrição empalideceu e esteve a ponto de vomitar.)
E o lar era tão sórdido psiquicamente quanto fisicamente. Do ponto de vista psíquico era uma toca de coelhos, um monturo, aquecido pelos atritos da vida que nele se comprimia. Que intimidades sufocantes, que relacionamento perigoso, insensato, obsceno, entre os membros do grupo familiar! Insanamente, a mãe cuidava de seus filhos seus filhos)... cuidava deles como uma gata cuida de seus filhotes... mas como uma gata que falasse, uma gata que soubesse dizer e repetir uma e muitas vezes: "Meu filhinho, meu filhinho!..." E ainda: "Meu filhinho dorme, meu filhinho dorme com uma bolha de leite branco no canto da boca. Meu filhinho dorme..."
-Sim - disse Mustafá Mond, meneando a cabeça - é natural que os senhores estremeçam.
Nosso Ford - ou nosso Freud, como, por alguma razão inescrutável, preferia ser chamado sempre que se tratava de assuntos psicológicos - Nosso Freud foi o primeiro a revelar os perigos espantosos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais - e, em consequência, cheio de aflição; cheio de mães - e, portanto, cheio de toda espécie de perversões, desde o sadismo atá a castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias - cheio de loucura e suicídio.
...
Mães e pais, irmãos e irmãs. Mas havia também maridos, esposas, amantes. Havia também a monogamia e o romantismo.
-se bem que os senhores provavelmente não sabem o que venha a ser tudo isso - observou Mustafá Mond.
Eles sacudiram a cabeça.
A família, a monogamia, o romantismo. Em toda a parte o sentimento de exclusividade, em toda a parte a concentração do interesse, uma estreita canalização do impulso de energia.
-Mas cada um pertence a todos - concluiu, citando o princípio hipnopédico.
Os estudantes aprovaram com um sinal de cabeça manifestando vigorosamente sua concordância a uma afirmação que mais de sessenta e duas mil repetições lhes tinham feito aceitar, não apenas como verdadeira, mas como axiomática, evidente por si mesma, absolutamente indiscutível.

Extraído do livro admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, publicado pela Editora Globo de Porto Alegre em 1977. O autor escreve o prefácio da reedição de Admirável Mundo Novo: ...Hoje não sinto o menor desejo de demonstrar que a sanidade é impossível. Pelo contrário, embora  continue não menos tristemente certo que no passado de que a sanidade é um fenômeno bastante raro, estou convencido de que ela pode ser alcançada, e gostaria de vê-la mais difundida.
Por ter dito isso em diversos livros recentes e, acima de tudo, por ter compilado uma antologia do que disseram os sãos de espírito acerca da sanidade e de todos os meios pelos quais ela pode ser obtida, ouvi de um iminente crítico acadêmico a observação de que sou um triste sintoma do fracasso de uma classe intelectual em tempo de crise.
A interferência é, suponho, que o professor e seus colegas são alegres sintomas de êxito. Os benfeitores da humanidade merecem as honras e comemorações devidas. Construamos um Panteão para os professores. Deveria localizar-se entre as ruínas de uma das cidades destruídas da Europa ou do Japão, e acima da entrada se inscreveria, em letras de seis ou sete pés de altura, estas simples palavras: Consagrado à memória dos Educadores do Mundo. Si Monumentum Requiris Circunspice.
MAs voltando ao futuro, se eu reescrevesse o livro agora, ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem. entre as duas pontas do seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito.