09 fevereiro 2010

A menina e as cores

Observar a natureza era a minha vida aos seis anos. 
Tinha a tevê, mas não me entretinha muito sentada na frente daquela caixa donde nada de novo saltava, já que era ligada somente a noite, naquela época.
De noite, numa tela chouviscada onde intuir a imagem era um exercício de imaginação nalguns dias, assistia à novela Cavalo de Aço, Tarcisio Meira com uma moto bonita que hoje chamaríamos de bicicleta motorizada, acelerando e derrapando, fazendo uma barulheira interessante... vá lá! 
Nas tardes, depois do almoço deitava na mureta atrás de casa de barriga para cima apreciando o mundo movimentado das nuvens através da copa do senhor abacateiro. 
Cumpria incansável a minha tarefa de conhecer os detalhes da beleza que era o universo visto daquilo que para mim era um grande pomar. 
Sentia-me muito atarefada, aquilo era trabalho sério de menina grande: comparar formas e matizes, reconhecer os passarinhos, analisar tamanhos, catalogar na memória sons e cores.
Observando a copa do abacateiro balançar, ouvindo o farfalhar nas grandes e brilhantes folhas quantas vezes excitou-se minha imaginação ante a evidente iminência daquele venerável ser pôr-se em movimento, saltar a cerca e desatar a correr ganhando o mundo pela rua afora sobre as raízes cobertas de terra revolvida, emaranhas em pedras amarelas, que era a brotação típica naquele terreno na Rua Sepé Tiarajú.
Pedras amarelas com várias camadas, sendo a mais interna uma bolinha perfeita, mais dura e escura que as camadas de fora. 
Descobri isso cavando para enterrar os finados passarinhos encontrados mortos ao léu. 
Navegava na grande nau da minha única companheira, a imaginação. 
Furava qualquer onda singrando mares de descobertas, ainda que parecesse somente estar sentada sobre a escada de madeira, remando com uma vassoura e um rastel...ou ancinho...certa feita um primo despediu-se da brincadeira chamando-me de retardada e outros obséquios, "pois se aquilo era apenas uma escada?!" A família dele morava na parte superior da casa, e nós no porão, seu pai era um tanto sádico, muito sádico, ele jogava água em um buraco do chão da casa dele e de lá gritava que estava urinando na minha casa, eu entrava em crise de choro, sentia a humilhação nos ossos, e ele ria mais, não importando as rogativas dos meus pais. eu era sua vítima preferida, ria enquanto eu chorava e esfregando a barriga e apontando em minha direção dizia que eu era a menina mais feia do mundo, meia cega e sempre enrugada, que parecia com uma dona Brasília - a velha mais feia de um lugar onde ele viveu quando era criança. 
Quando meu primo me chamou de retardada, reagi arremessando o ancinho com o qual eu remava num mar distante. 
Infelizmente o acertei e mais infelizmente ainda, ele gritou muito com o arranhão que a ferramente lhe provocou. 
Os adultos chegaram e eu fui condenada a ser a retardada agressiva daquela família.
Dias depois brincava em um tonel e senti um baque quando alguém me empurrou sobre uma cerca à beira de um caudaloso córrego que se formava na valeta lindeira ao tonel quando a estação de tratamento de água que havia mais acima abria as eclusas. Com o roncar da água não percebi a aproximação do executor. o tonel rodopiou e cai sobre o arame farpado e tive a benção de ficar pendurada pelo braço. até hoje pensam que tentei cortar os pulsos devido a cicatriz naquele ponto. Mas é cicatriz de pele rasgada, mesmo, em formato de "V ". 
Vê de vitória, ou v de ver a vida por um fio.
Morando naquela casa, me mandaram brincar, um dia, com os moleques na rua de cima, ali havia um menino sentado com cara de quem dormia ao sol, ou talvez de tigre que lambesse os beiços. este menino se tornou meu marido, pai dos meus filhos alguns anos depois.
Alguns anos depois, mas muito antes do casamento eu havia crescido e me tornei uma mocinha graciosa, fui convidada a me candidatar em um desfile de beldades da cidade, havia uma intensa programação e uma delas incluía um desfile em carro aberto pelas ruas centrais da cidade. Como o meu tio - pai do menino do ancinho - tivesse um belo carro, perguntei a ele se estava disposto a me levar. como a vaidade era sua principal característica, aceitou prontamente. 
Creio que no meio da carreata lembrou que carregava a moça que era a cópia da mulher mais feia do mundo e terminamos nossa amizade no final daquele evento. Ele disse que eu estraguei seu carro e até queria que eu pagasse. Desculpe-me, este é o conto sobre os seis anos de idade, não, sobre os quinze.
Volta e meia ancorava meu barco ao pé do senhor abacateiro, que era dono de um hospital onde esperavam por mim muitas gestantes abacates. 
Eu era uma obstetra muito reconhecida, pois no cais havia muitos salamaleques. 
Eu as enfileirava e ia fazendo as cesarianas; os bebês saiam todos com cara de lindos caroços de abacate. Era linda a mãe natureza.
Algumas pacientes maduras demais não resistiam, faltava-lhes algo, que nem água, nem meus paninhos resolviam. Me doía entregar os pontos depois de um parto mal sucedido em que tinha que reconhecer o fracasso. Aquilo me provocava uma canseira muscular e eu sentia como se não fosse me recuperar a cada caroço que escurecia rápido demais, a cada polpa que cedia antes de eu fechar depois da cesariana...
É assim a natureza dos abacates, é assim a natureza da profissão. 
graças á Deus não pude estudar para me tornar isso. 
Graças à Deus!
Mas o tempo não pára, a doutora se despedia apressada, que noutro porto precisavam de seus serviços. 
Então, no fim dos seis anos de idade, tive trocar de profissão, sair de casa mesmo que só no período da tarde. 
Chegara o tempo de ir para a escola aprender com professora. 
A primeira, foi uma moça muito delicada e falante, a professora Wally, que insistia em tornar-me uma jovenzinha evangélica. 
Sempre que meus pais permitiam, me buscava para a escola dominical que eu gostava muito, lá, no porão da Igreja, havia figuras belíssimas de cores muito vibrantes, cada Jesus, cada anjo! Eu não tinha tido qualquer livro até esta idade.
Comecei a estudar direto pela primeira série, era assim para todos, e sucedeu que ao invés do abacateiro ganhar a rua, eu é que me larguei nela numa tarde calorenta de março. 
Cabelo branquinho e mini vestido rosa pink, confiante em que o resto da vida seria como naquele dia em que me sentia bem disposta a conquistar o mundo.
Na valise preta, mais pesada do que podia carregar sem pender o corpo para um lado, ia o material cheirando a plástico novo, cadernos, lápis, estojo e uma caixa de lápis de cor com doze cores que tinha um pavão desenhado na frente. 
De tudo o que foi adquirido no bazar Bernardo Gressler, foi o que eu mais gostei. 
Foi a primeira vez que tive uma. 
Quando chegamos das compras experimentei cada cor fazendo um suave risquinho ondulado num pedaço de papel em que o pão viera enrolado. 
Foi com muito respeito e dilatada consciência da sacralidade do momento que reembainhei cada lápis após aquela experiência, na qual o meu
mundo adentrou numa dimensão poderosamente superior. A mãe me olhou com ansiedade, retirou-os da caixa novamente e aproveitando as ondas que rabisquei, sobre elas desenhou uma sereia, tinha os cabelos amarelos com uma flor vermelha que parecia hibiscos e sua cauda era verde e azul, ficou a esperar que eu me entusiasmasse e saísse a riscar as paredes, mas juntei meus lápis e guardei-os no estojo original, depois cerimoniosamente, na pasta. 
Não achei necessário explicar que não precisava passar por aquela prova para saber que era o que eu queria para sempre: estar no meio das cores, de todas as cores, e não desperdiçaria aquele tesouro de lápis coloridos com papéis que ao entardecer atiçariam as chamas no fogão à lenha. 
Nos primeiros dias de aula fiz uma amizade. 
Pela primeira vez tinha uma amiga, não prima ou parente, uma amiga escolhida por mim. 
Minha amiga era diferente da minha família, e eu pensava em como seria bom me parecer com ela, achava-a bonita e ela parecia fortíssima, no caminho para escola nunca reclamava de canseira e morava bem longe! Eu queria ter lindas trancinhas espetadas como as dela, mas as minhas eram moles. 
Um dia, durante o recreio, sentamo-nos nos fundos da escola em um lugar que fazia sobra e eu sentia meus olhos falhando para ver os detalhes nela
Conversávamos sobre a aula e então, quando mordi meu sanduíche de melado olhando para ela foi com profundo espanto que percebi que a diferença entre nós estava na cor de nossas peles. 
A minha amiga era escura como as árvores são por fora, e eu branca como as árvores são por dentro. Foi a primeira pessoa que tinha uma amiga e ela tinha a pele escura. 
Calculei que Deus havia gasto um bocado a mais de cor para o fazê-la.
Meus pais diziam que minha amiga era uma graça Eu ficava feliz, porém ela nunca foi na minha casa, mas nem qualquer outra colega. 
Eu nunca fui à casa dela, mas também à de nenhuma outra colega... No final daquele ano nos despedimos e minha família mudou-se para outro bairro, eu fiquei com minha tia para terminar o ano letivo e eu mesma busquei o boletim no final do ano, pois ela trabalhava. foi então que as professoras perceberam que eu estava com sarampo e ainda ganhei o maior pito por me fazer de vítima - era a febre! 
No ano seguinte fui transferida para a escola do novo bairro onde minha família estava morando. 
Quando passeava, ia ao centro com meus pais, procurava com o olhar pela minha amiga. 
Passavam-se os anos e às vezes eu pensava que a menina de pele escura, minha amiga, tivesse sido imaginária, ou... sei lá, talvez eu tivesse sido desagradável a ponto de fazê-la esconder-se de mim atrás das pernas dos adultos no meio do povo. 
Grande mistério! 
Nunca perguntei aos outros, tinha medo de ser considerada molenga por sentir saudades da primeira professora e da primeira amiga. Então não perguntava.
Numa cidade pequena, pensava, sempre é possível reencontrar ocasionalmente os conhecidos. 
Na sétima série, o professor mais amigo, ao qual recorríamos por qualquer dúvida, era o de Educação Moral e Cívica, o José Carlos. Como diríamos hoje, um afro descendente, como penso, ele tem a pele escura como as árvores são por fora. Numa aula de EMOCI, em que estudávamos a nossa cidade, sua peculiaridade por ter sido formada por imigrantes de doze nacionalidades e vários grupos raciais, naquele dia contei a todos sobre as lindas tranças da minha primeira melhor amiga. 
Escondi, engoli a emoção, que assim sufocada, me persegue pela vida a se largar em gotas, cada vez que lembro que naquele dia, naquela situação... através daquele professor vim a saber que a minha amiga existia sim, passava muito bem a Fátima. Era filha dele e continuava caseira e estudiosa, como eu.
Um dia fui visitá-la, ela não estava, vai ver também tinha ido me procurar...
Morei mais vinte anos na mesma cidade e nunca nos reencontramos.

Escrevi o texto acima em 1991.
O link de hoje: La Guerre du Feu:



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