01 agosto 2010

Luciana


Conheci Luciana quando nasceu. Não ajudei a escolher seu nome porque eu não tinha nada a ver com o bebê que minha mãe ia ter. Eu tinha dez anos e muito no que pensar. Logo que nasceu, dei-lhe meu desconhecimento, mas um dia na cozinha, ao passar pela caminha dela dei uma olhada e algo me fez voltar para observar melhor aquela pessoa curta e gordinha dormindo no berço de vime entre babados brancos.Vestia um conjuntinho amarelo que minha mãe tricotara em ponto arroz. Meu coração aqueceu e alguma coisa me ligou à ela.Dalí em diante eu voltava da escola e corria ver o que acontecia no berço, mas ela só dormia. De vez em quando podia pegá-la no colo e me sentia tão ansiosa quanto uma onça que adotasse um filhote de macaco ou coelho, dava vontade de morder, ou era para brincar? Eu ficava a analisar as mãos gorduchas fechadas e cheias de covinhas espremidas contra as bochechas, num sono de espera. Olhando para o bebê eu crescia, meu espírito ondulava e eu virava pé de vento e temporal, e não entendia por que. Era amor. Algo grande estava acontecia ali, aquela boneca de cabelo vermelho e arrepiado carregava em si uma massa descomunal de potencialidades. Estar com ela era como assistir uma banda bem colorida, passando no sol do meio-dia, os metais lançando chispas bailarinas. Equivalia a felicidade de brincar na chuva, fazendo buracos na lama com os amigos da rua. Vê-la tentar ficar em pé, cair e tentar novamente até conseguir, era tão precioso como folhar as revistas alemãs de bordado branco sobre azul, que a dona Margarida me deixava ver quando a visitava com minha avó. Quando aprendeu a caminhar e falar, meu amor ficou um tanto mais manso, me sentia tranqüila. Sentava-me na sombra do cinamomo para fazer as lições escolares após o almoço, e ela, cheirando a talco Johnson’s, corria titubeante atrás das galinhas.
A vida deu um salto e quando voltei a olhar em sua direção a menina já havia terminado o primeiro grau e queria estudar na escola agrícola, queria ser técnica agrícola, depois faria agronomia. Estava pedindo para morar comigo no interior, já que nossos pais agora moravam na capital.

Ela saia de madrugada e voltava à tardinha, chegava em casa com os longos cabelos louros emaranhados de pingos de cal:
-Porque hoje pintamos o celeiro da escola fazenda.
Às vezes eu a esperava no portão e via ela se aproximar devagar, abatida, perdida dentro do enorme macacão azul sujo:

- O terneiro ficou entalado no canal de parto e o professor me fez enfiar a mão na vaca para ajudar, ainda bem que deu certo, mas foi horrível!

Noutras feitas, insegura, com os olhos verdes ainda maiores, dizia sem convicção, que se saíra bem dirigindo o trator! Um ano e meio e desistiu. Resolveu ser professora:

-Acho que é o que gosto, sinto que é meu caminho. Se casou, formou-se, tem dois filhos, continua estudando e trabalhando.

Saí do Rio Grande do Sul e agora nos vemos apenas uma vez por ano. Sempre que nos reencontramos ela ainda esta abatida pelas atividades de final de ano na escola. Leciona em uma escola que fica na cidade ao lado donde mora, todo dia dirige muitos quilômetros pela estradinha de chão na serra. Sobe morro, desce morro, pelo fiozinho de estrada que se enrola entre a mata. Sempre que nos reencontramos narra o inusitado cotidiano de quem vai para o trabalho dirigindo solitária por lugares ermos.
- Vi uma onça!...Me espanto,ela apazigua: -Era pequena.

-Desci para tirar o porco espinho que não queria sair do caminho.

Conta histórias dos seus alunos, das famílias deles e assim vou acompanhando o crescimento de pessoas que não conheço.
Atualiza:
-Lembra daquele menino que te falei no ano passado? E ela lembra que me contou do menino, fico olhando para aqueles cabelos loiros que voam com o ventinho da tarde, para aquela cara bonita de mulher decidida e não ouço a história do menino, o meu espírito ondula e vira pé de vento e temporal, e hoje eu sei, que é amor.
Escrevi em 2004.
Nas fotos: Manuella, a filha mais nova de Luciana, e eu, aí,
nosso primeiro encontro na semana passada, e ao lado, Luciana desfilando no 7 de setembro com seus alunos e colegas de escola.
Para ouvir a interpretação de Gerli e Haroldo Goldfarb "CANTIGA POR LUCIANA", clique no título.

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