Passei os olhos por uma enquete de um jornal feminino; diversos senhores conhecidos eram chamados a precisar o que, numa mulher, os atraia ou desagradava. Quanto à atração, era vária a escolha; beleza, doçura, inteligência mesmo,compartilhavam os votos destes sedutores. Mas quanto às repulsões, uma palavra reaparecia sempre: virtude. sobretudo, nada de virtude. Cobiçavam mulheres ou amantes impertinentes, avaras, invejosas, ou mesmo sistematicamente infiéis? Suponho que não. sou levada a concluir, por via de dedução, que para o homem moderno a virtude se identifica ao mau humor e à frigidez. Curiosa evolução.
O que é que nos resta, em suma, de uma civilização cristã de tantos séculos? O pior. O culto do sacrifício sem alegria, da virtude sem objetivo, o senso do pecado sem o senso do perdão, um dolorismo que parece a austera antítese do prazer, um horror à natureza, à vitalidade, que ofende a cada instante o dogma mesmo da encarnação.
Jesus nos aconselha a vender todos os nossos bens para adquirir uma pérola de alto preço. ele nos diz para acumular bens que os ladrões não furtem, que a ferrugem não ataque. Ele não nos diz para vender nossos bens para não encontrar nada no seu lugar, para renunciar a todos os tesouros, para soçobrar num despojamento sem alegria. Para dizer a verdade não possuiremos a pérola senão como possuímos a bondade ou o amor: pela simples contemplação. Mas as alegrias que deixamos por uma alegria maior, é isso um sacrifício?
Parece que o sacrifício não nos parece meritório se não comporta nenhuma contra partida, mesmo de ordem espiritual.
A viúva que não se casou outra vez "por causa de seus filhos" e que se assemelha a uma planta sem água, a solteirona que sempre viveu "para sua mãe" e renunciou à sua carreira ou a "fundar um lar", são dois exemplos típicos que a gente cita sempre. Ainda é preciso que essas renúncias sejam bem enfadonhas, bem desesperantes; sem o que , elas são consideradas sem valor. Jeanne, que trabalha numa clínica e que, com efeito, não se casou para cuidar de sua mãe enferma, Jeanne, alegre, doce, luminosa, é um desses casos com os quais a gente se enternece. Vendo-a com tal doçura maternal com seus doentes, digo a Jean:
- Que pena que Jeanne nunca tenha se casado! Ela teria sido uma boa mãe!
- Sim. ela se sacrificou por... Mas note você que a Madame X...é uma velha senhora encantadora. tem curiosidade por tudo, humor estável, muito cultivada. E Jeanne tem uma profissão que lhe interessa. Não, ela não tem de que se queixar.
Certamente, Jeanne que oito horas por dia, em pé na clínica corre, vai, vem, dá injeção, à fricção e da toalete à tomar, para encontrar ainda tempo de fazer seus cursos, um pouco de limpeza, cuidar de sua mãe e bater papo com ela, não deve se queixar. seria preciso ainda que tivesse uma mãe rabugenta e impertinente - mas creio que Jeanne se arranjaria - seria preciso que ela mesma, amarga, frustrada, rechaçada, sofresse a cada instante por uma escolha que ela mesma fez, para satisfazer aos outros. O veneno jansenista nos contaminou profundamente, para que a virtude não nos pareça compatível senão com a melancolia.
A alegria de Jeanne existe, ela é sensível, assim como essa dor que, no ventre, se apodera dela ante os filhos dos outros.
A virtude teria, pois, um ventre? É preciso crer.
Mas a desconfiança diante da alegria é tal, que mesmo o sofrimento não a resgata. um dia eu sorri a uma velha senhora na igreja. era Páscoa; a alegria da Ressurreição (essa Ressurreição que a gente esquece muito em proveito de um dolorismo da Paixão que só existe para a alegria da Páscoa e que os ortodoxos cantam tão bem). ressoava em mim. eu lhe sorri, simplesmente porque também era para ela esse Aleluia, não é? ela teve um estremecimento involuntário, surpresa. é tão deslocado sorrir na igreja. Mas onde então? Onde?
Texto extraído de A Casa de Papel - Françoise Mallet-Joris, publicado por José Olympio Editor.
Foto: Óleo sobre tela que pintei em 2004, em meu atelier, em 2010.
Clicando no título, uma virtude sonora -Corrigindo! Que raio de virtude foi a que clicastes anteriormente? Falha minha, e me desculpe!Esqueci de trocar o link, agora sim vai uma virtude, só pode ser violino e Schumann, ative o link ou clique no título da postagem: http://youtu.be/uSizRAWZJhI mas fica registrado o anterior, isto é dor, a meu ver, mas eu enxergo pouco. Como obra de arte é uma maneira simplificada de contar uma história, no mínimo pessimista, que sendo história, haverá de sempre ter meandros e riqueza oculta, mas o artista põe na luz segundo sua tendência, eu não sou Brás Cubas, especialmente quando se mete a romancear a origem de dona Plácida...enfim, registrado o engano, uma visão depreciativa, tendenciosa e machadiana, talvez: http://youtu.be/eDqdKKnUl2k
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