06 abril 2010

A Luz se chama KV Andante 467



http://www.youtube.com/watch?v=yKhD_LbU2XA
A música acima se chama k v andante 467, é de Wolfgang Amadeus Mozart. 
Tocou na Radio Repórter Fm de Ijuí. 
Fui até a cabine que ficava no centro do escritório e liguei para a rádio. 
O programador, o Selomar Filipim, informou o nome. 
Nunca esqueci. 
No dia em que prestei atenção nela eu estava com 14 anos 
Trabalhava em um escritório desde os 13 carimbando notas, também passava, transferindo com enormes folhas de gelatina para o livro oficial da empresa, as folhas de contabilidade que Avelino Seibel mimeografava e datilografava em um trator travestido de màquina datilográfica
Apanhava os filhos dos chefes na escola, levava dinheiro das filiais para a matriz, levava a blusa da colega para trocar, comprava café moído na hora no Bernardo Gressler, escolhendo as bolinhas para moer pela cor, quem moia era a Silvya, uma atendente que tinha olhos grandes e azuis e sorria bem meiga. 
No escritório eu ajudava a Sonia Storch a revisar números. Eu cantava e ela conferia, ela sabia que tinha que ser assim, pois quando eu ficava para conferir passando a régua abaixo do número que ela cantava eu perdia a concentração e cochilava. 
O tempo nunca podia sobrar, no arquivo eu organizava as pastas com notas, notas de entrada e de saída, blocos de notas, livros-caixas.
Mais raramente entregava recados e notas do escritório para fábrica.
No caminho interno e particular da empresa que ocupava vários quarteirões havia um canteiro de rosas grandes cor de rosa pálido. Sempre que me incumbiam desta tarefa, era na parada para apreciar os botões e o desenvolvimento daquelas formas e tons do canteiro do seu Bruno Scheffell que eu via o divino.
Na fábrica reinava um ruido permanente, igual ao da Avenida Brigadeiro Faria Lima.
Me perdia em desdobramentos esperando que o gerente preenchesse a papelada que eu teria que levar de volta ao escritório. 
Do mesanino, observando as moças da fábrica em suas máquinas, armazenei na memória o cheiro do couro e as formas engenhosas das máquinas da empresa, que no ano em que começei a trabalhar completara 76 anos.
Dia destes Zizí me presenteou com uma bolsinha que trouxe do Urugauy, que pretendo usar nas caminhadas, o cheiro do couro me ergueu pelo nariz e me levou de volta no tempo ao mesanino da fábrica, donde eu via as moças juntando os recortes e montando sapatos.
Só faltava os helicópteros para ser a Faria Lima, o resto...máquinas, vidros, cores, movimento mecânico... ordem incompreensível e muita luz, sem cessar, sem cessar, máquina quebrada, máquina substituida.
Só não havia churrasquinhos e shnaps vendidos em carrinhos, como na Faria.
Algumas vezes o modelista pediu meu pé, e eu me divertia no trabalho mais rico em estímulos do mundo, eu era também modelo de pé, e caminhava para eles observarem.
Semana passada estive na Secretaria de Cultura de São Paulo que fica próximo a Estação da Luz, para protocolar documentos e me cadastrar como artista habilitada pelo Pac. A Secretaria funciona em um prédio igual ao que trabalhei e tem uma escada em caracol com vão livre central, igual a que usava para subir para o escritório após registrar meu cartão ponto no meu primeiro trabalho, a escada que me dava pesadelos nos meus 14 anos.
Neste dia, quando fui à Secretaria, minha filha de 14 anos estava comigo, e por mais fértil que seja minha imaginação não consegui visualiza-la caminhando pelos corredores do prédio antigo a levar e trazer documentos. Queria sim, descer escorregando pelo corrimão da apavorante escada. E quando fomos a livraria da Sala São Paulo, ela estava longe de uma imagem que desfilaria em sapatos de salto alto, queria correr pelo salão.
Depois de vermos os cds e livros caríssimos do lugar, fomos ao Museu da Língua Portuguesa. 
Ao atravessarmos pela Estação da Luz, no saguão havia um menino com um sorvete em uma das mãos, enquanto com a outra dedilhava um piano. Nos aproximamos. Meu filho leu na lateral do instrumento: "Projeto piano de rua".
-Mami, é de rua. Será que dá para levar para casa?
O menino pingava sorvete e ia tóim tóim tlim, cavalgando no teclado, o avô o chamou e se foram. Meus filhos dedilharam um pouco, disputaram um pouco enquanto eu pensava, que pena que é tarde para aprenderem.
O verniz descascado, pés comidos e tampa ausente: “Toque-me, sou seu”
Os trens da estação estraçalhando metais e o tlim tlim do piano sonhando que estava em casa.
Projeto Toque-me, sou seu, do artista inglês Luke Jarram.
O piano na Estação da Luz, na saida do metrô, na entrada do metrô...Intermezzo & Spina.
Vamos, que vai chover e temos que conhecer o museu!
No museu, Machado de Assis sussurrava trechos em gravações, fotos e objetos presos pelas paredes, sua história suas estórias. Um universo.
Sorrindo de olhos divertidos, Joseph acionava a gravação da voz aveludada, grave e provocante recitando nomes de mulheres.
Aos 14 anos de curiosidade, Camille queria saber quanto, mas quanto haveria de custar uma gigante bobina de papel industrial, tão linda, mas tão branca e tão bonita, de sulfite brilhante e fino, como aquela exposta de forma tão apetitosa, para encher de palavras e desenhos.
-Quanto? Assim, mais ou menos, quanto tu calculas?
Huhum, então minha menina sente atração pela superfície do papel? Voltei aos meus quatroze anos e lembrei-me do dia em que encontraram as notas da empresa que eu devia guardar ordeiramente, e a maioria estava desenhada no verso, e como em uma avalanche, logo deram de cara com as folhas do livro oficial copiadas de pernas para cima...Na sala de touch screen do Museu da Língua Brasileira, Camille foi pesquisar em uma tela só dela, eu e Joseph dividimos uma, no menu que aparecia na tela ele tocava nas palavras das quais podia extrair sorrisos, queria saber o significado de bunda, soltava gargalhadas de admiração e uma voz informava qual era a origem, bafafá, borogodó...
Na tela gigante da parede, Regina Casé, imagem nossa, orgulho nosso, perguntava ao menino na favela:
- Se você for procurar emprego, vai dizer o quê para o patrão, diga ai, e oferecia-lhe o microfone, o patrão quer saber o que você sabe fazer melhor.
O menino olhou para o céu, pensou e respondeu:
- O que eu sei fazer melhor...eu sei empinar pipa.
E tudo termina naquela risada gostosa da Regina Casé, dando um catiripapo no piá, que ria a mais não poder com sua pipa na mão. 
Encontramos prazer nos vídeos e exposições e perdemos o horário para uma tal sessão de um magnífico filme que não admitia retardatários, sei lá, devia ser um filme a inglesa.
Rápido, rápido que se não formos embora agora, vamos pegar metrô lotado!
Na Estação da Luz, na sala do Toque-me que sou seu, havia um rapaz negro, baixo, vestindo terno preto, divinizando o piano de rua.
Um Will Smith paulistano de preto.
Em pé, na frente do teclado, de olhos fechados e irradiando ondas de atração, Akhenaton monopolizava os transeuntes, que estavam com pressa, estavam com pressa, mas ao se aproximarem, frouxavam o semblante e deixavam-se ficar.
La atrás os trens guinchando nos trilhos em freadas, na rua da frente o coral das buzinas que voltava para casa já iniciara. Camille me abraçou, Joseph se achegou e ficamos ouvindo a música do piano adocicado por sorvete, encantando a multidão.
Akhenaton e o piano de rua.
Quando terminou, Camille perguntou-lhe desde quando tocava, ele contou que começou a estudar há dois anos, que estuda todos os dias e aprende no Conservatório Villa Lobos.
Nos despedimos e entramos no buraco do metrô ao som de Imagine.
01/03/09
Nos links - Imagine
Um lindo presente recebido de uma amiga

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