18 abril 2010

Lúcio

Comprei em uma loja que demora a entregar e mandar o montador para ativar o móvel. 
Sabia que a loja era assim, mas vivo na idéia de dar segunda chance ao circulo de confiança, como prega o personagem de Robert De Niro, em Entrando Numa Fria. 
Comprei escrivaninha e uma simples cadeira. O vendedor prometeu que faria a montagem em dois dias, dez passaram e niente. 
Fui até a loja, pedi explicações ao gerente, que muito solícito, arauto das boas frases, me tranquilizou dizendo que verificaria, deu-me as costas. Como entendi que deveria fazer, segui-o. 
Entramos no escritório, e ele sem dar pela minha presença recomendou ao atendente: 
-Se livra dela, eu fora! Essa tal artista de plástica é uma chata! 
Achei graça na situação, graças por eu ser eu, e não ele, se bem que se fosse ele, também seria um eu. Divertido, mesmo que as peças continuassem dentro das caixas em minha casa, esperando o alumbramento...
Rede de confiança por ali...é porque não viram o filme. Ao encerrar este laboratório já estava escurecendo. Minha filha quando me vê chegar tarde em casa diz que estou virando uma paulistana. 
Abano o rabo; elogio! 
Chovera forte o dia todo, naquele momento mais que antes desandou um aguaceiro federal. 
Quase 20:00h e ônibus, nenhum! Mulheres com os olhos atormentados em cacoete consultavam os relógios. Informaram que sempre que chove é assim. Escolhi um lugar alto para morar e esqueci que não devia freqüentar os baixios quando chove. Anoiteceu. Sapo de outra lagoa, é preciso não errar, senão fico em pior situação que os locais que sabem o que vem depois. 
Culpava-me com os pés encharcados me debatendo  em dúvidas, arrependida pela compra, pela rota, quando, ao meu lado, emocinal e divertida uma voz quase gritando indagou a um senhor que havia parado no ponto há pouco: 
-Lúcio, é você mesmo? Lúcio, mas é você? Os dois se abraçavam embaixo da marquise. 
Abraçavam-se e se largavam para se encararem, buscando na segurança do afastamento acabar com a incredulidade que lhes pegava no meio do abraço. 
Eu via as mãos do que falava Lúcio-mas-não-acredito! As mãos dele davam tapinhas acalentadores nas costas do Lúcio, repetia: 
-Mas... há quanto tempo! Mais de vinte anos, não é? Vinte anos, Lúcio, nós ainda eramos uns meninos! Dois meninos Lúcio! Você aposentou-se, Lúcio?
Dentro da cúpula do passado mutuo relataram ali, naquele lusco fusco molhado o que fizeram nestes vinte anos de distância. 
O que fizeram é o que eu faço, e o que tu fazes, o que fazem as mulheres nervosas que naquela noite aguardavam o ônibus. Responder à vida. 
As mulheres e eu, assistíamos. Elas, com expressão de pássaros molhados sobre um fio quando giram a cabeça para observar uma vaca passando, mais pelo movimento do que pelo encanto. Eu, emocionada, querendo abraçar também.
Reencontros me comovem. O senhor que se chama Lúcio dizia ao que não se chama Lúcio, que morava ali perto do shopping. 
O que não se chama Lúcio, falou seu endereço ao outro. Mora na mesma rua que eu. Nem estávamos perto de casa e o gajo era meu vizinho?
Nem toda confirmação da física quântica justificava para mim, recém chegada na Babel e très assustada com a solidão acompanhada das ruas, um acaso assim. 
Se não fosse atrapalhar o reencontro, bem que eu teria entrado na conversa dos dois. Mas não dava para interromper a história deles, nem tanto por respeito, mais por ser boa demais. 
Nisso o ônibus chegou, que quando é para atrapalhar ele vem. Como era por isso que eu estava ali, assim que o motorista permitiu, entrei. O cobrador pediu licença para tomar água e etc.
Estava horrorizado com o trânsito: 
-Uma desgraça, duas horas para vir da Praça Ramos de Azevedo!
Passei meu cartãozinho magnético na roleta e sentei-me. 
Observava os dois amigos que agora se despediam. Minha garganta apertou, com o coração aos saltos, saltei do ônibus; agora ou nunca:
-Posso tirar uma foto de vocês? O Lúcio autorizou: 
-Se fosse rápido... 
Fotografei, agradeci e corri para meu lugar no ônibus  que já estava fechando as portas. Sentei-me ao lado de uma das mulheres que havia esperado comigo. Ela me olhava com cara de incredulidade agressiva. ...Códigos, infrigi um... Era pedaço da noite quando desci do ônibus perto de casa, assustada percebi que o senhor que não se chama Lúcio estivera no ônibus comigo e desceu no mesmo ponto. Caia uma chuvinha fina e eu dobrei a esquina, ele dobrou atrás. 
O quê? Arre, esconjuro! 
Ouvir alguém dizer que mora na mesma rua não implica em aceitar que seja verdade quando a poesia dos quilômetros de distância do endereço acabam e o desconhecido continua a caminhar quase ao seu lado.
Senti na carne o medo instintivo de fêmea que volta para a toca onde deixou filhotes e não quer denunciar a entrada do ninho. 
Inclusive, não era uma boa noite nada boa para morrer. 
Sem ver a escrivaninha montada, ainda menos! 
Era hora de fazer algo, parei e perguntei: 
-O senhor mora aqui, mesmo? Ele, com um bom tanto de resguardo:
-Moro logo ali!

-Logo ali? Onde?
-Ali para baixo. E a senhora, mora aonde, naqueles prédios?
-Não, numa casa mesmo.
-Ah, bom, então até logo!
-Até logo! Atravessou a rua e desapareceu na noite, dei um tempo e entrei em casa. 
Eu ia dizer que passaram-se mil e duzentos anos e a loja não veio montar os móveis, mas lembrando da reportagem da Bravo, sobre Glória Menezes, em que a entrevistadora diz que por a Glória ser gaúcha, tem mania de exagerar, vos digo: passaram-se alguns dias não vieram montar meus móveis. Liguei para o SAC e conversando com o atendente percebi que ele também queria a cabeça daquele gerente. Fiquei com pena do palhação. 
Decidi não reclamar nem à defesa do consumidor e nem contar para ninguém.
Vou aguardar até o meio da semana, se não vierem, reclamarei pessoalmente na loja. 
Quem sabe tenha sorte de ouvi-los inadvertidamente novamente, e possa fingir-me de ultrajada. 
Tenho tempo para decidir que estilo de roupa usarei para uma ocasião assim. 
Talvez um scarpin e um sobretudo sem nada por baixo...ah, não, assim será para outra ocasião.
escrevi em 2007, mas revisei e alterei hoje

“Até onde lembro, sempre considerei como função do poeta o lembrar, o não esquecer, 
o guardar em palavras o sofrimento, 
o invocar o passado através da evocação e a descrição cheia de amor. 
Mas devido à antiga tradição idealista também 
carrego algo da missão que tem o mestre, 
o censor e o predicador. 
Porém, sempre hei me deixado levar 
menos pelo sentido de ensinar e mais 
pelo sentido de exortar que se dê alma à vida. 
A reflexão não é investigação ou crítica. 
Somente amor. 
É o estado supremo e mais 
desejável da nossa alma: amor sem avidez.”
extraído de Hermann Hesse-Pequenas Alegrias



Clique aqui e no título, ou só em um destes para ouvir o que o Bee Gees canta por mim. 
É o que - embora meio disléxica quando insegura - é o que me resta: 
http://youtu.be/LWgJ8a4EwAI

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