17 agosto 2011

O Carro

Em geral as pessoas acham bom procurar distração; isso é totalmente desnecessário quando se vive intuitivamente, porque a distração estará presente e tudo o que se possa desejar de um prazer sadio virá como um acompanhamento natural do fato de se viver intuitivamente. Prazer, não complacência. ademais, moralidade é utilidade. Obedecemos às normas de trânsito, porque sabemos que, se não o fizermos, nos mataremos e também mataremos outras pessoas. Ao mesmo tempo, é um panorama impressionante acompanhar o movimento de um grande circuito de trânsito e observar o preeminente espírito de cooperação intrínseco no fato de "obedecer às normas". Trata-se de uma oportunidade em que há mútua concordância, inteiramente impessoal, e em que as possibilidades de fraternidade são vagamente percebidas.
essa ação de intuição pode parecer autocrática e em nossa era democrática, hesitamos diante de qualquer coisa que tenha visos de autoritarismo. no entanto, a natureza é autoritária! Por mais que tentemos, podemos acaso fazer alguma coisa para deter as chuvas periódicas, as enchentes, os terremotos, as erupções vulcânicas e tudo mais? A natureza no homem que se respeita a si mesmo é a única espécie de autoridade a que ele deseja se submeter, mas para compreender e cooperar com as leis da natureza, é preciso inteligência e iniciativa. Podemos ajudar na criação de certas formas vegetais e animais que não existiam, mas temos sempre de operar segundo as leis naturais, que são invariáveis. somos produto da natureza, nossas mentes, nossos corpos e funções surgiram todos pelos ditames da natureza. então porque devemos ficar chocados diante da sugestão de que os aspectos morais e éticos da vida também teem seu modus operandi nos domínios invisíveis da natureza? Se é assim, então o desenvolvimento não é tanto uma questão de assumir uma "forma" original, mas de descobrir o que essa forma deve ser. ela pode ser descoberta, porque já existe intrissecamente; apenas o direito a livre escolha nos afastou disso. Uma árvore pode ser vergada pelas pressões que atuam sobre ela, obrigando-a a acrescer retorcida. Isso não significa que ela tenha pretendido crescer desta maneira. A árvore não tinha escolha. as circunstâncias determinaram a sua forma.
Podemos escolher, e de fato o fazemos, a forma que tomaremos, e ninguém pode examinar a natureza humana de perto sem se dar conta  da constrangedora disparidade existente entre os sentimentos que se expressam e os que ficam implícitos. assim, se os intelectuais se escandalizam com o fato de defendermos a descoberta dos princípios morais e éticos que regem o Universo, intrínsecos na natureza e em cada um de nós, então só podemos dizer que eles são "irrealistas" (quantas vezes uma pessoa intuitiva é acusada de ser irrealista!) por não levarem em conta o inevitável. Se nos dizem que está chovendo lá fora, embora não possamos ver a chuva, isso não altera o fato. Contudo tomamos conhecimento dele, isso evidentemente dá ordem ao nosso dia.
Se há qualquer coisa de que esse mundo necessita mais que tudo é de estudar intensamente a natureza - suas formas, suas estações, seus caminhos - tanto nas florestas como nos nossos próprios corpos e mentes. Inúmeras vezes foi dito e raras vezes levado em conta que tudo o que precisamos saber está exemplificado na natureza, se ficarmos suficientemente tranquilos e atentos para ver. Prestar atenção à natureza e aprender com ela chegou a ser considerada uma ocupação ligada ao jardim da infância, a Rousseau, aos poetas, artistas e outros "visionários", não tendo qualquer valor prático para nosso mundo civilizado e sofisticado. Nada, por certo, é mais prático do que tomar conhecimento do significado e da função originais do nosso próprio ser. até que isso ocorra, nem sequer podemos começar a viver de modo significativo.
Se captarmos por uma vez que seja, toda a verdade do que nos é dito - que só podemos começar a viver quando nos compreendermos em relação à natureza - então uma grande mudança se verificará. ela precisa ocorrer. Sejam quais forem os compromissos que tenhamos para com nossos amigos, a nossa família e com a sociedade, no momento em que a compreensão intuitiva chega, não há obrigação mais importante do que ir ao encontro do seu significado à nossa própria maneira individual -seja ela qual for. É inútil dizer: "Tenho de esperar até que tenha cumprido todas as minhas obrigações. Economizarei para ter dinheiro e, então ter tempo para sentar-me tranquilamente e descobrir essas coisas." Isso nunca acontecerá deste modo. A vida continuará a pressionar e seguiremos pensando continuamente que algo é mais importante ou precisa ser atendido.  Essa crença é sempre amparada por todas as boas pessoas que pensam saber o que é o dever de um homem!
Se é verdadeira a premissa de que, pela via intuitiva, podemos no devido tempo chegar a ser infinitamente mais úteis a nós mesmos e à humanidade, onde então reside essa nossa obrigação? A equação de Polônio não é exatamente um bom conselho, nem um raciocínio profundo: é uma máxima, um fato natural. A prova é se uma pessoa pode aguentar as invectivas dos amigos bem-intencionados e ter a maturidade e o discernimento para ver a sua primeira obrigação, seja qual for a espécie de desajeitado que isso o faça parecer aos olhos da sociedade. As pessoas que importam, respeitarão a sua integridade; o restante se desvanecerá, que é como deve ser.
Há só uma coisa a dizer sobre a possibilidade de cometer erros. Nós os cometemos. O mesmo ocorrerá com qualquer pessoa, e quanto mais preocupados estivermos em ser perfeitos e em não perder a oportunidade, mais tolhidos ficaremos, até que o esforço se torne insuportável. Tentando ser perfeitos, estaremos indo totalmente contra a intenção do processo intuitivo, que é a de nos mostrar as nossas próprias fraquezas e de nos transformar em seres ativos e fortes com um objetivo digno na vida. Aquele que tenta forçar o processo -para permanecer sempre imaculado - terá de finalmente se defrontar com o fato de que seu próprio esforço tem origem no orgulho, a mais comum e desastrosa de todas as fraquezas. Há em cada homem algo que está muito próximo da perfeição - esse eu, alma ou princípio de onde a intuição brota.
Há um modo de encarar esse fato sem perder o próprio equilibrio. Que o espírito fique satisfeito com o fato de haver, em cada pessoa, algo inteiramente digno, ainda que oculto. Em seguida volta-se a atenção para a maquinaria do eu, como quem examina as imperfeições de um carro. 
Há, naturalmente, queles que são tão rogulhosos de suas posses que jamis admitirão os defeitos dos seus carros, tão estrita é a identificação do "eu" com o "meu". Mas a maioria de nós admite que mesmo os melhores carros teem imperfeições, e se formos propensos a mecânica, materemos os ouvidos regularmente sintonizados com qualquer sinal indicativo de defeito no funcionamento normal. da mesma forma, o intuitivo deve manter atento o seu ouvido em relação a si mesmo, aceitando as suas vulnerabilidades e defeitos, decidido a uma só coisa: descobri-los e cuidar imediatamente deles.
A intenção da anlogia é tirar da observação o elemento de consciência e dar-lhe uma atmosfera inteiramente impessoal. se alguém estiver decidido a fazer, séria e honestamente, a descoberta de si mesmo, isso por si só é o mais elevado fator moral a que talvez possa aspirar.
Podemos dizer que ele corta pela raiz todas suas outras fraquezas, de modo que basta a coragem para se sustentar ao chegar a hora. A consciência, assim como o medo, só tem sentido nos níveis mais baixos de percepção. O intuitivo sumplanta completamente o medo, assim como a consciência no seu sentido restrito. Seus princípios de ação são demasiado amplos e abrangentes para serem empregados no desperdício e incômodo da dolorosa autocondenação a cada instante de erro, porque estes são numerosos durante o processo de desenvolvimento, e se o intuitivo tiver de sofrer a cada momento, se desgastará e morrerá de alguma doença nervosa antes que tenha saído indene da batalha.
ele deve ser bastante amadurecido e objetivo para não se julgar com muita tolerância, nem com excessivo rigor, e sem ser tão impessoal como o é par seu carro.
Há outro aspecto nessa quastão de cometer erros. A própria palavra encerra uma tola conotação moral que nos faz recordar como nos sentíamos nos bancos escolares. em certo sentido, não existe isso que chamamos de erro.Estamos todos nos esforçando, consciente ou inconscientemente para descobrir o que é a vida afinal. Pode ser muito necessário que façamos repetidas coisas tolas até que o poder da atração dessas coisas cesse. se é necessa´rio, é necessa´rio. O método de tentativa e erro é demorado e árduo e leva a muito desperdicio e destruição; mas, para a maioria de nós, é o único caminho. até mesmo as pessoas mais inteligentes provavelmente teem de repetir mais de uma vez. Como, porém, a intuição surge para suplantar o lugar do intelecto, o método de tentativa e erro tenderá a render-se à percepção direta.


Extraído de O Processo da Intuição, Uma Psicologia da Criatividade, 
de Virginia Burden, traduzido por Daniel Camarinha da Silva -Editora  Pensamento, 
Edição original de The Thosophical Publishing House, 
Weaton, Ilinois, divisão da Theosophical Society in America.

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