Ao visitar Dublin, um fazendeiro ganhou de presente um casal de coelhos. Levou-os para casa numa cesta e passou-os à caseira para que cuidasse deles. Ela não gostava de bichos e só os aceitou por razões de cortesia. Resmungou e sugeriu que o melhor era dar cabo deles, ou vendê-los, porque era sabido que coelhos se multiplicam muito rapidamente e acabariam se transformando em uma amolação. Mas seu patrão lhe disse que de forma alguma podia dispor deles, visto tê-los ganho de presente. A caseira não teve outro jeito, a não ser levá-los para o depósito de combustivel que ficava no fundo da horta da cozinha. Os coelhinhos eram muito novos e ainda pouco desenvolvidos. Um era branco puro. O outro, negro como carvão. Quando foram postos no depósito, correram para um canto e meteram um a cabeça sob a barriga do outro, aterrorizados pelo lugar desconhecido. A caseira mandou um menino trazer algumas folhas de couve. As folhas foram jogads perto dos coelhos e o depósito foi trancado quando chegou a noite. Na manhã seguinte, quando foi aberto, o coelho branco havia desaparecido. Achando um vão entre a paredede tábuas e o chão, abriu com as patas um buraco e ganhou sua liberdade. Havia bosques nas proximidades e provavelmente ele fora para lá. Não fizeram tentativas para recapturá-lo e a caseria se sentiu muito feliz, pois agora era impossível ao coelho sozinho multiplicar-se por conta própria. Proibiu que se fechasse o buraco, na esperança que o coelho preto acabasse por seguir sua camarada branca. Contudo, o coelho preto não fugiu. Ou perdera o instinto de liberdade, ou era esperto demais para compreender que se achava mais seguro no depósito do que nos bosques, onde seria presa de cachorros, doninhas e caçadores. Embora o buraco continuasse aberto, ele jamais sequer meteu a cabeça nele. Por outro lado, pintou e bordou na horta e mordiscava tudo o que crescia por ali. Ninguém se metia com ele, e a caseira dizia que o prejudicado seria o patrão, se o bicho daninho não deixasse sequer um talo de aipo para a mesa. Com isso, em pouco tempo o coelho preto se tornou enorme. Cresceu até ficar maior que o maior gato Maux. Tinha nas costas uma pelagem negra lustrosa suficiente para se fazer um tapete de quarto. Tinha dentes como navalhas e orelhas tão compridas como as de uma lebre. O velho fazendeiro costumava levar seus visitantes à janela que dava para a horta para que vissem que interessante coelho monstro que ganhara de presente. A caseira passou a se sentir aterrorizada pelo animal, dizia que ele não era natural e acabaria por trazer desgaraça à propriedade. Pois ele manifestava uma precocidade extravagante. Os coelhos são talvez o mais inofensivo e tímido dos animais, mas esse camarada desenvolvera uma personalidade surpreendente. Comparado a um galo ou um cachorro, não tinha nada de estranho, mas comparado a outro exemplares de sua espécie, era, indubitavelmente, uma brincadeira da natureza, uma curva súbita e inesperada em direção à perfeição de um intelecto divino; de fato, como o primeiro macaco inspirado por uma visão de humanidade. E assim como todas as coisas que subitamente se mostram diferentes e mais belas que a turba inspiram medo e ódio aos ignorantes, esse belo e inteligente coelho se tornou odiado pela caseira. O verão estava chegando ao seu fim antes que o coelho alcançasse seu tamanho completo, mas já começara a fazer artes. Até então, havia se divertido de forma comum, alimentando-se assiduamente, enchendo-se e aparecendo entre as plantas, dando cambalhotas no campinzal quando o sol estava quente, sentando-se sobre as patas traseiras e boxeando com as dianteiras contra o vento. Fingia tornar-se invisível, achatando-se contra o chão, deitado de lado, com as pernas esticadas como se estivesse morto. Quando as borboletas começavam a aparecer, ele inventou um novo brinquedo. aprendera esse brinquedo com o pequeno poodle que a caseira deixara solto no quintal com intenções malignas. O dono não admitia animais domésticos de nenhuma espécie dentro de casa e seus cães de caça eram mantidos acorrentados em outro quintal. A caseira convidou entretanto um amigo a visitá-la, e esse amigo tinha um poodle. Puseram o poodle no quintal com o coelho, na expectativa de que ele atacasse e matasse o coelho ou, pelo menos, o expulsasse para os bosques. Mas quando o poodle viu o enorme coelho, ficou com medo e começou a bufar. O coelho saltou para perto dele, de pura curiosidade. O cão começou a recuar bufando. De repente, o coelho começou também a bufar e avançou para o poodle. O cão fugiu ganhindo. Depois disso, o coelho aprendeu a bufar e se divertia perseguindo borboletas e bufando contra elas. Ele se escondia sob uma folha de repolho até que uma borboleta se aproximasse. Então dava um salto e bufava. A borboleta voava para longe. O coelho tronou-se mais atrevido e complexo em suas atividades. Passou a se divertir com uma franga obesa atacada por uma doeça que a fazia se parecer com um peru. Tinha pernas extremamente compridas e um corpo gordo e arredondado quase sem penugem por baixo. Ficava geralmente de olhos fechados e só acordava para comer o que lhe fosse dado. Não podia nem ciscar nem bicar o chão em busca de comida como uma galinha comum. O coelho descobriu um jeito de aterrorizar esta franga, tornando sua vida miserável. Aproximava-se silenciosamente por trás até meter-se entre suas pernas. Então fungava e dava um salto para cima. A franga gritava e saia às voltas pelo quintal correndo, de asas penduradas. Encorajado por esse sucesso, passou a aterrorizar tudo o que encontrava pelo caminho. Um dia, quando a caseira estava colhendo flores para a mesa do patrão, meteu-se sob suas saias, bufou nela também. Ela deu um grito e um pulo. a pique de desmaiar de medo e vergonha pela indelicadeza da ocorrência, viu o coelho se escafedendo em direção ao depósito. Então jurou pelas Sagradas Escrituras que patrão ou não patrão, presente ou ausente, daria cabo do bicho daninho. Essa região do país era notória por seus gatos. Disficilmente se encontra nesse distrito um gato doméstico. Se nele aparece um novo gato, logo se torna selvagem. Pois os bosques da vizinhança estão cheios de gatos meio selvagense, quando aparece um novo exemplar de sua espécie, eles cercam a casa miando até que o recém chegado se junte à eles. No verão raramente visistam residências, pois a caça abunda nos bosques. No inverno se mostram quase domesticados, pois se são aceitos, vivem em volta das casas das casas destruindo ratos e camundongos. A caseira se fez amiga de um desses gatos andejos e tentou induzi-lo, por ofertas de comida, a permanecer na cozinha. Mas como se estava apenas no começo do outono, o gato ficava apenas por uma hora ou pouco mais diariamente e sumia de novo. Bebia o leite que lhe era oferecido, se aquecia na lareira e sumia de novo. Contudo, um dia em que ele estava lambendo o leite no chão da cosinha, o coelho preto apareceu, aos pulos. Ele viu o gato. O gato levantou a cabeça e viu o coelho. Olharam um para o outro. O gato era cinzento, com listas esbranquiçadas em volta do corpo. Era muito feio e feroz e tinha manchas de lama seca, como remendos, pendentes da pelugem comprida e imunda. Seus olhos eram velozes como os de um criminoso fugindo de uma perseguição. Ele parecia absolutamente maligno. O coelho inspecinou-o de início distraidamente e, descobrindo que ele estava com medo, decidiu pregar-lhe uma peça. Começou a saltar vagarosamente em diureção ao gato. O gato baixou o corpo. À medida que o coelho se aproximava, o gato se baixava mais, até ficar achatado ao solo. Subitamente, enrolou-se como uma bola. Seus pelos eriçados e ele abriu suas fauces vermelhas. O coelho não se amadrontou e continou saltando em sua direção até que, dando um ronco, saltou sobre o gato. O gato gritou e saltou para o ar. No ar deu uma volta e disparou para a porta, desaparecendo imediatamente. O coelho voltou a roncare, brincalhonamente, saiu correndo atrás dele. Durante o dia não se teve mais notícia do gato. Caiu a noite. O coelho recolheu-se ao depósito e o depósito foi fechado como todas as noites. O coelho se enrolou e começou a dormir em sua cama de palha. Ouviu-se então nos bosques próximos um grande barulho de miados. O barulho ia e vinha, crescendo e diminuindo, como ruídos discordantes de uma orquestra tocada por loucos. Estranhas luzes apareciam entre as árvores na escuridão, como fosforecências na superfície do mar à noite. Gradualmente os guinchos lamuriantes foram se juntando e aproximando até se converterem em um só berro pungente. Então pararam e reinou um silêncio completo. Uma fileira de infernais luzes errantes saiu dos bosques, duas a duas, oscilando como luzes de velas em uma procissão de fadas. elas avançavam, paravam e tornavam a avançar até chegar ao depósito onde o coelho dormia. Aí formaram um círculo e se imobilizarm. As luzes eram os olhos dos gatos. Um exército de gatos havia acampado em volta do depósito. Ali permaneceram quietos por algum tempo, sem emitir som algum. Então um gato avançou silenciosamente para o buraco da parede. Olhou para trás para seus companheiros. Enfiou a cabeça no buraco três vezes. Voltou a olhar seus companheiros. Podia se ouvir o som leve de um ronco baixo, melancólico e distante, e todos os gatos se ondularam agitando seus corpos. O gato líder mergulhou no buraco desaparecendo no depósito. Um a um, silenciosamente como fantasmas, os outros gatos fizeram o mesmo, até que todos entraram no depósito. Po rum momento, reinou um silêncio mortal. Ouviu-se então um grande grito, o berro de um coelho apavorado, seguido por um ruído de coisa rasgada. Depois o silêncio reinou novamente. O silêncio foi quebrado por uma ladainha melancólica que se elevou na noite, com um tom maligno e desesperado, misturado ao som rascante de carnes sendo rasgadas. Pela manhã, quando a caseira abriu aporta do depósito, viu os gatos sentados rodeando a pele esvaziada do coelho.
Seus olhos vidrados a contemplaram sem medo algum.
Antologia do conto irlandês organizado por Munira Mutran, O MUNDO E SUAS CRIATURAS - O Coelho Preto, autor Lian O'Flaberty, Associação Editorial Humanitas.
Clique no título para ver como o tempo corre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário