09 julho 2010

Voando sem instrumentos

Entregou-me a pedra sem me ver. 
Tinha os olhos fixos, arregalados a forma de fascinação. Destes que não favorecem profundidade, antes são meros sinais faciais. Disse-me: "-Faça uma pomba - entusiasmou-se -isso!, faça uma pombinha, vejo uma aqui." 
No exercício com argila pedi explicações sobre a composição do material e quais seriam as dificuldades na queima para cada tipo. Entusiasmei-me, e ansiosa por reconhecimento, citei minha experiência de três anos no Pontal do Paranapanema onde pegava a argila nas jazidas, tinha que retirar algum resíduo como pedras ou madeirinhas e ainda assim não trincava na queima; se era em função da composição do barro natural, ou a queima em fornos gigantescos das olarias em meio aos tijolos e lajotas, de forma lenta, é determinava a resistência do que eu produzira na época. 
Era um barro bem preto, e agora, para o exercício recebia argila vermelha... 
Perguntei-lhe de que forma se comportaria esta na queima. Não respondeu. Narrei o caso para minha filha e ela argumentou que a professora provavelmente não ouvira. E foi o que pensei depois de fazer o tal discurso com os mil olhos das colegas presos na minha cara. Respondi à Camille que tentei repetir a pergunta de forma mais simples mas a professora interrompeu-me deselegante e agressiva. 
Durante o curso não mais me dirigiu a palavra ou cumprimentou. 
Entre as colegas havia algumas que eram suas alunas na faculdade. Disseram que lá ela também é assim. Pensei em abandonar o curso, mas já havia pago. Algumas colegas diziam que não abandonavam porque o haviam ganho. 
Tentei desfazer o mal estar como auto-desafio. Kilekau - assim, meio viking, passei a chamá-la, já que era sua expressão de aprovação entusiasmada somente aos trabalhos incipientes- tem medo, idéia fixa em competição; seu mote: Ah, a concorrência... E pois, sim, há concorrência. Que seja saudável! 
De longe bispava a Chiquinha com seu rabo de cavalo. Alguns me aconselharam a formalizar queixa, outros sentenciaram: tempo perdido! Chiquinha Kilekau tem um grande atelier, excitada, entre palminhas declarava que nada a faz mais feliz do que empurrar uma escultura grande em um "carrinho apropriado". 
Lembrei-me da charrete do seu Adão que transportava as peças grandes que eu fazia para as olarias em Teodoro Sampaio. Boa charrete, molas amortecedoras das melhores, nunca uma peça trincou ou quebrou, puxada por um matungo marrom muito calmo. Passos seguros pelas ruas empedradas de Teodoro Sampaio. 
Seu Adão transportando figuras de argila...e deus (astronauta?) dirigindo seu automóvel atrás, observando o comportamento de Adão com a responsabilidade delegada. 
Seu Adão não parecia grande apreciador de maçãs, mas gostava do desafio de não quebrar a “estauta” da gaúcha.
É certo que Chiquinha Kilekau não falava deste tipo de carrinho, mas dos movidos a muito dinheirinho. Mas quem viu, zomba da escultura em praça pública que ela perpetrou com movimento errado. 
Sentia-me arreliada pelo trauma, por perder tempo, mas tinha que aprender algo com a experiência. 
Meu mantra é “não vim até aqui para desistir agora”. 
 Estraçalhei a pedra que recebi e não fiz uma pombinha, mas duas! 
O que fiz é um ninho com ovinhos e tudo. 
Todo o desaforo que suportei estoicamente até ali  valeu o gritinho sufocado da professora quando entrou na sala das pedras e identificou a minha veneta escultórica. 
Se antes não me dirigia a palavra, agora nem se aproximava donde eu trabalhava. 
Compreendi o prazer dos bobos desenhistas de falos estilizados dos muros. 
Que primitivismo mais interessante! 
Que prazer em revisitá-lo em pedra sabão! 
Saboreava os melindres da Chiquinha: 
Que cobra que sou! Fiz adoráveis amizades. Surreal. 
Estava ali de sarna. Cobrei reiteradamente a apostila prometida pelo curso e não a recebi. 
É que sarna, cobra. 
Acabou o curso e as férias. Tu pensas que derrubo aquele Golias? 
É blindada por dois mil e quinhentos diplomas, uma escultura de ar modelada por diplomas. 
Os anos passam e fico cada vez mais satisfeita comigo por nem ter tentado desmascará-la publicamente de dedão em riste, à lá Brizola. 
O ferimento ocasionado pela negação dela em me reconhecer como aluna, colega, existência espiritual - que seja - não cicatrizou. 
Busquei com a determinação e o sacrifício de um templário em busca do Graal, não cicatriza, só quando eu entender...Por que? 
Disfarço-o com sarcasmo, mas não deixo de ficar penalizada ao pensar em quantos tombam por medo de gigantes de papel como aquele. 
Tudo porque ousei me apresentar e fazer uma pergunta. 
Foi como se tivesse dito: 
-Eu sou o teu pior pesadelo(entre dentes), guriazinha!

Fotos: Duas pombas, inconcluso. e senhor Adão em frente à cerâmica do senhor João -Teodoro Sampaio, SP. 

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