08 julho 2010

A Casa do Bispo

Segunda-feira, passa de meia noite, sentada em frente a lareira com as mãos a cheirar laranja. Laranjas e fumaça, é assim que começo a pintar toda noite, fogo na lareira, fogo que me aquece por fora, que me queima por dentro...
Labaredas iluminando laranjas cor de laranja e a cesta 
de vime amarela com recortes e fotografias dentro. 
O fogo por dentro e por fora, 
 minhas mãos parecem metal líquido modeladas por fantásticas luvas transparentes, 
pegam o pincel e fazem.
Vão saindo traços curvos, linhas retas, e mais retas, curvas novamente, as mãos param e me perguntam se vi, se aprendi como fazer. 
Coloco a mão que agora é de gente de novo, em meu queixo duro, e respondo que sim.
Hoje acordei mais cedo e senti a presença do quadro que pintei sem ver. Passeio o olhar pela sala sem me prender nele, ainda tem que materializar mais um pouco. 
Parece heresia eu avistá-lo, vamos que a matéria-cor não goste e 
desapareça, não sei... se eu olhar mudará, talvez, de ordem, de forma. 
O confronto da lembrança com a realidade, é esta a ansiedade, será, será que foi o calor da hora? 
E meus filhos tomam o café da manhã... ah, se o mundo parasse! Parar o mundo -parado! A fumaça das chaminés, parada! 
 O cachorro com a perna erguida ao lado do poste, na cara tranquila estampada a satisfação do banal, parado! Eis que o telefone põe o mundo em movimento berrando estridente, do outro lado do mundo a amiga que mora logo ali, responde o meu alô. Lembro que ontem, remexendo as brasas pensei em ti, como andará esta poetisa? Ligou tão cedo, falou, mas não disse. Olho os quadros destes dias, o das flores, o das mãos, o grupo de mulheres, somente mulheres, e ainda assim, lá estão todos, todos que conheço, homens e mulheres, com suas expressões sobre o rosto das mulheres nuas que pintei. 
 Durante o dia não vou pintar, faço divulgação, tenho conversas, faço caminhadas. 
Comprei lenha para o fogo indispensável na lareira arquitetada pelo construtor do casarão, o Dom Walmor Battú Wichrówski - o Bispo. 
Esperarei pelos alunos para a aula da noite, com fogo alto. Hoje é dia de pagamento das mensalidades. 
Na hora de começar a aula, faltou luz. A primeira aluna já chegou, chama-se Sara. Vem de outra cidade, esta comigo há dois anos, seus pais são agricultores, nas entre safras, trocamos aulas por produtos coloniais, ou a mãe de Mara, que é costureira, faz alguma coisa que eu esteja precisando. Dar aulas para Sara é uma riqueza. Quando sua mãe estava grávida pegou rubéola e ela nasceu surda. Sara é a pessoa mais radiante que conheço. A próxima a chegar é Suzana, que criou os filhos e estava procurando um hobby quando chegou ao atelier, a pretensão se alterou, e muito, de lá para cá sonha atelier, produz e cresce rápido. Está ambiciosa quanto ao futuro do seu trabalho. 
A terceira a chegar é Ivana, é uma menina que os pais estão estimulando a fazer algo que eles também gostariam de fazer. Em seguida chega o Stefanello, ele é dentista, também de outra cidade, ex-seminarista, é um artista que optou por uma profissão estável paralela. 
Mantenho-o informado do movimento cultural, da movimentação da Fundação Cultural e ele me fala das técnicas que aprendeu no seminário, às vezes me empresta suas ferramentas, hoje lhe pedi a serra elétrica. Quero fazer algumas experiências com madeira, na próxima aula ele trará. 
Agora chega a última aluna, a Êmili, uma menina com várias meninas inquietas dentro de si, espírito moleque com a qual estou aprendendo a buscar e impor limites, ela tem dificuldade em se concentrar, e eu também, perto dela ninguém fica quieto, temos que ordenar o ritmo para que a melodia surja, é exercício mútuo. A luz não voltou, hoje Êmili trouxe sua mãe para ser modelo para a turma. Esperando que a energia retorne, acendo todas as velas, as dos castiçais também. 
As meninas sentam-se no tapete, cada uma com um livro de poesias. Numa ordem que só elas conhecem, recitam, e nós, adultos, naufragados na penumbra de nossos oceanos particulares, sentindo as três meninas sentadas rodeadas de velas no blecaute da cidade, Êmili, doze anos, a super-ativa, Sara, quinze anos, natural no ambiente, trancendental, Ivana, treze anos, a tímida. 
No final, três meninas... Êmili assustada – concentrou-se!  Ivana deixando ver a ponta do iceberg, e Sara alegria segura... Os adultos: Mara, assustada, refletindo assombro nas lentes do expressivo olhar que flutua sobre a gola alta do blusão felpudo. A modelo, a mãe de Êmili, cansada ao chegar pediu desculpas, sentia-se imprópria.  No final da aula que não aconteceu, está serena, suave, sentada no chão, perto de um castiçal desenha caracóis azuis no papel cançon. Stefanello, que saiu para negociar os créditos da faculdade da filha na universidade, retorna em meio ao sarau das meninas. Sentou-se sem fazer barulho, no final de cada poema, sorria calmo, mas seus olhos soltavam chispas. 
Eu, talvez uma zeladora do espaço, ou a timoneira da imensa embarcação cultural fantasma que navega por esses ares, um coelho preto, uma pessoa que adora gente, uma não sei exatamente o quê, e nem se saberei um dia...talvez...sim, naquela noite era a timoneira do tal navio que de vez em quando se acopla em algum lugar que sirva palpitar com energia emprestada. 
A noite foi perdida, ninguém melhorou a técnica do desenho da figura humana, nem pagou a mensalidade. 
A noite foi maravilhosa e inesquecível. 
Todos se foram, a luz voltou. 
Na madrugada, em frente a lareira acesa descasco uma laranja e jogo as cascas no fogo, as chamas se avivam e a pele do meu rosto começa a encolher. 
Hoje não vou pintar.
Julho de 1999 -
Nas fotos: 1- A modelo Êmili Lemanski posa para alunos das terças-feiras,
2- Aulas dos sábado, meus alunos, o estilista Clóvis Boufleur e o arquiteto Luiz Fernando Amorim em aula com modelo Mauro.
3 - Cartão do Bispo Dom Walmor Battu Wichrówski, o construtor da casa que foi temporariamente Diocese, Dom Walmor foi o primeiro morador do casarão que restaurei para instalar meu atelier, em Ijuí/RS.

Clique no título para ouvir Reflections of Passion, o som que vibrava nos quatro salões integrados da Casa do Bispo, era com ele que eu recebia os alunos. 

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