Foto de uma aquarela que Shirley pintou dentro de um barco, no Rio Paranapanema -O pouso das garças.
A cidade é pequena, très pequena. Quando saia passear de noite - único momento possível de ir para rua durante os verões terrivelmente abafados, sauneados pela vizinhança do rio - ao buscar um lugar para lanchar tinha a sensação de que eu era uma ratinha correndo em círculos numa sala bagunçada. Ou um hamster andando em círculos em uma gaiola ao ar livre, gaiola pequena, firmamento infinito - susto, mas andando em círculos sempre.
Lindas corujas davam rasantes pegando bichinhos nos terrenos baldios ou no asfalto deserto sem se importarem com a ratinha diferente. De vez em quando cobrinhas lombrigavam atravessando o caminho: me disseram: não tenha medo, são cobras cegas. Naquela tarde chovera derramado e o céu prometia mais.
Céu raro, nada da luz congestionada das estrelas, da correria de brilhos inomináveis pelo céu, só um cobertorzão de nuvens de lã cinzenta e a certeza de que algo bárbaro romperia aquela membrana que envolvia o momento.
A luz dos postes refletia no fio d’água pura do chuvaréu da tarde que corria junto ao acostamento.
Meu filho e eu sentamo-nos na mesinha do bar, mastigamos alguma coisa. De braços moles esperávamos pela tempestade. Na mesa ao lado estava minha aluna que sanduichava quando entramos, cumprimentei e passei. Ela estava acompanhada por uma mulher alta e distinta, acabaram o lanche e permaneceram em silêncio, fui até lá mexer com elas. Abriu-se parêntese; Míriam me apresentou Shirley, uma pessoa de olhar doce, bem alta, e vestida de suavidade.
Shirley, uma pintora aquarelista de renome internacional. Mais tarde ela me contou que nasceu na Virgínia, Estados Unidos e cresceu no Texas, casou-se com um arquiteto inglês, o Derek, e atualmente moram na Inglaterra, em Londres.
Estava em Teodoro Sampaio para pintar a fauna e a flora da região, minha aluna fora designada pelo IPÊ, onde trabalhava, para ciceroneá-la.
Nos últimos dias Shirley estivera colhendo imagens das onças, plantas e aves do Parque Morro do Diabo, logo iria para outra reserva florestal, no litoral de Santa Catarina.
Eu sei dizer oi em inglês, e a Shirley só sabe dizer hi em português, mas no dia que nos conhecemos, pegamo-nos pelas mãos e ficamos nos olhando, decorei seu rosto, percebi a textura dos seus cabelos e medimos quanto de luz cada uma carregava. Certo!
Na semana seguinte Shirley foi até minha casa, chegou durante a aula, olhou meus quadros, minhas esculturas, apresentei-lhe meus filhos, meu gato...Sentamo-nos para tomar chá inglês da latinha, aquele, guardado só para os santos dos últimos dias, convencidas de que não deveríamos nos perder. Fecha parênteses.
Shirley foi-se embora, eu vim morar em São Paulo.
Pego o dicionário de inglês e escrevo cartas para Shirley. Ela responde e envia cartões ilustrados por ela. Se demoro a responder ela cobra resposta.
Shirley escreve sempre antes de fazer uma longa viagem, como se pensasse que posso decidir visitá-la sem aviso, então... Shirley vai pintar no México.
Shirley esta na Guatemala,
Shirley foi sentar-se na beira duma cratera na lua para fazer a melhor aquarela de sua vida...
Novo parêntese: em novembro recebi em mãos o livro do IPÊ, o último dos mais de cem livros que a Shirley ilustrou, este traz as imagens que ela fez na viagem em que nos conhecemos.
Quem o trouxe foi Pedro, seu amigo, que também é tradutor do livro.
Pedro Miguel da Costa Pedro, ou Pedro Squared, é biólogo, de mãe portuguesa e pai francês.
Pesquisa doenças transmitidas por insetos na floresta. Pedro disse que tem lido o que eu escrevo e chama de poesia.
Sugeriu que eu não use gíria, que isso dificulta a tradução.
Recebi Pedro em casa, e para beber, também escolheu Lapsang Souchohg Tea. Fecha parêntese.
Acabei de ler Sempre Viva, de Antonio Callado, que narra cenas da brutalidade das caçadas no Pantanal. É urgente registrar e estudar a riqueza natural que está dentro da “cerquinha” em que nos encontramos. Pelo menos para mostrar as imagens aos nossos netos, que vão nos perguntar em poucos anos...como diz Roberto Carlos, na música.
Mas o que tem a Shirley a ver com Roberto Carlos, do que eu falava? Ah, de seres humanos que se encontram e reencontram.
E que importância tem a língua ou nacionalidade se estamos confinados na mesma bolinha de cristal e nosso grupo de convívio chama-se humanidade?
Clique no título da publicação ou no link para ver as Baleias - Roberto Carlos
Nenhum comentário:
Postar um comentário