Pegava as ferramentas, um balde, uma enxada e madeira para reforçar o bocal, e o fazia no domingo pela manhã -porque naquele dia ninguém vinha cedo buscar água. Eu dava pela falta dele e minha mãe já recomendava: não o perturbem. Então via as costas de meu pai através da janela, indo rumo ao gengibral. Alguém sempre vigiava o trabalho pois a profundidade da fonte era desconhecida, dava para ir cavando e a água brotando cada vez mais forte.
Não perdíamos ele de vista, ativo, inquieto, sempre cheio de construções e novos plantios, mudas raras, atenção e histórias sobre bichos exóticos e tais novidades, era interessante a mais não poder.
Mas a limpeza do poço não podia ser acompanhada de perto. Eu ficava a meio caminho da casa, e alguém na janela.
-O Seu Basílio não desiste, exclamava a vó, a mãe não comentava, nada estranhava, tudo era sabido esperado e apoiado em sua alma gêmea.
O poço era santo, dali brotava até nas piores secas água fresca, confiável e sanadora; da vertente que ficava no centro da gigantesca touceira de gengibre.
E não se trata aqui de ampliar a plantação pelo afastamento dos anos, que nadam vivos como se fosse hoje - bastando fechar um pouco os olhos - os minúsculos peixinhos que na valeta depois do poço brilhavam aos sóis.
Ricas jóias da minha infância! Prateados e mais rápidos que a velocidade da luz ante a mão ansiosa da criança que sim, foi muito feliz capturando então os girinos - que seja - numa lata de leite Ninho e tratando-os com pastinho.
-Mas e não é que estão crescendo?! Vão te escapar quando virarem sapos, disse uma vez, e à noite desconfio que largou meus anfíbios, embora eu tenha sem sucesso esquadrinhado milimetricamente o terrenão buscando pelos cadáveres das minhas criaturas para incriminar a suspeita: a vó, novamente e sempre ela, avessa ao pendor biólogo desta parte de sua descendência; mas era evidente, já que visitava os outros filhos, os outros netos e comparava.
Quando chovia forte por muitos dias o mundo vinha abaixo: passava por nós.
Depois disso o pai também limpava o poço que a enxurrada cobria e se tornava um triste sítio achatado, tapado de lama com os gengibres atolados até os joelhos (joelho de gengibre, elegante até assim).
Para fustigar o orgulho zeloso de meu pai, nossos parentes diziam-lhe que aquilo não era poço, e sim uma vertente.
Tínhamos água encanada, mas os outros... tínhamos paz e segurança em casa, mas minha família sempre recebeu os viajantes, alimentou os famintos e ajudou muitos a encontrar trabalho, e era ao meu pai que os familiares recorriam para julgar e equalizar as querelas entre pais e filhos, casais e acolher temporariamente filhos de algum lar desfeito. Ele, que teve mãe parteira.
Naqueles domingos após os churrasco em que alcool nunca foi acompanhamento, o tio provocava o pai: não é poço, é vertente!
-Se não é poço é por falta de vontade de eu cavar mais fundo, redarguia meu pai, e na indefinição da designação, ainda assim a água cristalina permanecia sã e cuidada para ser pega em garrafa, às vezes como remédio por alguns, como desejo repentino por outros: mandei fulaninha pegar, que me deu uma vontade e tinha que ser do seu poço; ele ficava muito feliz ouvindo e nunca quis contratar ninguém para fazer a limpeza da vertente, embora trabalhasse pesado durante a semana e volta e meia contratasse lavrador para arar as terras nas quais minha mãe eventualmente plantava melancias, melões e pepinos entre o milho, mas mais que tudo cultivava calêndulas para bonito!, e para espanto geral da vizinhança - liberdade com respaldo da alma gêmea, hoje sei: divertiam-se.
Divertem-se ainda, e muito, só que hoje com outras excentricidades, que não o campo amarelo.
A vertente foi aterrada e o sítio foi loteado, mas eu nunca lhes contei.
Quando passo por uma fonte ou poço me emociono ao lembrar o valor que uma nascente tem para meu pai.
Pela certeza que na água pura que esta Mãe Terra faz brotar de suas entranhas, está a cura para tudo.
Foto da fonte que a mãe
tem em seu jardim atual.
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