06 novembro 2013

Café e Homens Místicos

Lá vem ele de novo, aquele bicicletista juramentado com sua buzina vendendo pão no cesto. O que até poderia ser uma boa solução quando não quero me vestir para ir até a padaria. 
É enrolar o corpo, ou o conto, e dizer que a bem da verdade não apareço de roupa trivial nem mesmo para piá que vende pão, tampouco para a Beth, da Avon. Esses, mesmo, até merecem mais esmero e capricho na vestimenta, pois de suores e calejamentos já veem fartura. 
É a responsabilidade visual. 
Como a verbal, de falar de acordo com o ouvinte, mas para naturalidade da elegância ficar mais evidente, andar de salto até dentro de casa. 
Talvez já seja mesmo somente mais um caso de encurtamento de tendões. 
Porém, tem dias que são não. e não compro pão nos dias não. Nada! 
Faço um bolo, dou um pulo, compro um livro, de salto, saltinho, tênis sem raquetes, como no passado. 
Comer é precisão, mas não é disso que se trata o conto. É do tempo em que eu pintava retratos feito máquina fotográfica, o dia todo, todos os dias no shopping Bourbon em Santa Maria, de salto alto. Santa Maria, não de salto, a Santa Maria que se diz da Boca do Monte, montes digo eu. 
    A que vem depois daquele verdor que envolve  ondulando a cidade de Dona Francisca, e vai anunciando a cidade universitária. Como portal, a Universidade Federal, onde eu levava as crianças fazer piquenique junto ao planetário e ia caminhar na pista olorosa do bosque de pinheiros alemães. 
Camille, dia desses olhou o cardápio da Universidade e espantou-se:
 - Cruzes, mas tem tanto curso quanto em São Paulo! 
    Mas em São Paulo também tem maritacas em algazarras nas manhãs de nossas janelas. E gente que vende pão em cestos. Que em Santa Maria não ha. São Paulo tem a gente que faz doces brancos maravilhosos nas feiras da Liberdade e os mercados exóticos nas periferias, oferecendo ingredientes que nem as feiras do Oriente em seus dias áureos... 
Ainda tem os parques, a concha acústica no Villa Lobos, as árvores floridas e 
bairros delimitados pela evidente diferença de seus tipos, pseudo Xangri-lás. 
O que é isso?  
Quem reclamar não tem olhos para ver. 
É a Salada Russa. 
É a vida, caleidoscópica de saltar o coração pela boca. 
    E Santa Maria?, por onde se chega cruzando a Garganta do Diabo. A Santa Maria é caldeirão bueníssimo para quem topa altas temperaturas no verão. 
Isso se tu chegas por Julio de Castilhos, e não fores uma noiva desesperada do tipo que pulava de lá  antigamente. 
Mas para não embromar, que já passa da hora de gente que quer crescer em saúde, dormir, chegando ao ponto de Julio de Castilhos, o município gaúcho onde os piás, até hoje crescem sabendo o nome de todo mundo que mora ou permanece mais de dois dias na cidade - é de lá que conto a historinha saborosa. Ao menos de contar. 
     O começo é a apresentação de um bom amigo que conheci quando tinha meu atelier no Shopping Bourbon de Santa Maria, o Azevedo. 
     Enquanto sua esposa meio caladona - como toda mulher que usa cabelo com penteado permanente - ia fazer compras no supermercado, ele vinha com um neto muito sorridente, olhar a minha exposição, e depois que entabulamos a prosear sempre me convidava para um sagrado café, que tomávamos na mesa que ficava em frente minha sala e dentro da área de alimentação. 
Me informava da cidade, dos pontos interessantes para conhecer na região. 
Foi o Azevedo que me contou da existência e localização de Mata, a cidadezinha ao lado de Santa Maria, que tem as ruas pavimentadas com árvores fossilizadas. 
Azevedo estava aposentado pela base aérea e ainda fazia algum bico de repórter para o jornal interno. Perguntava dos meus negócios e contava do seu jardim e das árvores, podas e aves, que conhecia muito. 
     Contou-me, certa feita, sobre o mais inusitado acidente aéreo ocorrido por aqueles pampas, 
serras e missões. 
Em um tempo em que gaúchos eram sujeitos muito cheios de engenhosidade, e os que sabiam ler eram muito contadores de histórias, da bíblia e dos mitos para os que não sabiam. Naquele tempo em que se dependia do fio da lâmina, mas que se usava com bastante parcimônia, pois das histórias difundidas, os de boa índole guardavam o sentido da feiura que era ser tido por um prejudicial Sicari. Mas quantas confusões e massarocas verborrágicas em que os heróis transitavam livres pelas epopéias alheias e quase ninguém dava por conta nem estranhava, e até mesmo quem percebia, aceitava quieto a muito bem vinda variação que impedia a monotonia de um causo só, o único entretenimento nos ermos recantos onde a querosene ou o pavio dum toco de vela eram o lume para lá de adequado aos contos noturnos, além das estrelas, do luar e das companheiras Mães da Vida que costumam ainda hoje iluminar e circular os banhos de rio em certas regiões. 
     Mas disso não sabia o Azevedo, e se sabia, não falava. Muito cosmopolita e entendido em quase tudo do ponto de vista dos homens da cidade, via o mundo descortinado como qualquer sujeito acostumado a ver de cima. 
     Contou-me, pois, de uma bravata perpetrada por um peãozinho duma fazenda em Julho de Castilhos, que numa bonita tarde dos fins de quarenta cavalgava pelos campos de cima da Serra juntando o gado, numa época em que certamente andava com a cabeça mais cheia de Davi e Golias do que preocupado com as impossibilidades que adviriam dali a um pouco, com a Pós-Modernidade, e até bem defasado, visto que nem da Modernidade tivera notícias, e eis que do nada, mesmo que vindo doutra dimensão, um aviãozinho teco-teco(quando a base aérea da vizinha e grande Santa Maria nem havia sido aberta) furou as nuvens e aproximou-se dos pastos dando um tremendo susto no xucro, pondo em debandada o gado que a custo ele havia reunido e conduzia arrebanhando. 
    Galopava e destratava, o bravo de braço erguido contra a fera aérea. O piloto, o pícaro Ícaro, resolve brincar um pouco mais com o gauchito metido a vespa e retorna, desta vez numa ousadia de quase arrancar o chapeuzito do vivente, que se não estivesse amarradinho de barbicacho...pois bem, gado espalhado, gauchinho feroz e o piloto retorna para arrematar a brincadeira com uma última e gasosa arremetida. 
    Ao aproximar-se pela terceira vez, deu-se o impensável. A heresia perpetrada pelo centauro pampeano que desinformado em etiqueta comportamental perante novos engenhos poderosos, arremessou as boleadeiras que só pararam enroladas nas hélices da máquina, entregando o recado que o piloto não ouviu, dos berros anteriores emitidos pelo do chão: 
"Vá brincar com outro mais entendido na sua linguagem, que eu estou aqui a trabalho, e estragastes o labor de um dia inteiro". 
    Foi notícia, garantiu o Azevedo. 
    Achei muito divertido como causo, mas não acreditei. 
    Na próxima vez que apareceu (lembro como se fosse hoje, ele se aproximando como um diplomata ultrajado com o álbum preto embaixo do braço e eu sentindo que ia ter que engolir meus comentários desafiadores), vinha com a pasta de recortes de seu trabalho e de fatos como esse, admiráveis. 
Lá estava a foto xerocada em preto e branco do fato noticiado pela imprensa de Porto Alegre, se não me engano, onde aparecia o aviãozinho de nariz no chão e em primeiro plano a caraça em close do rapaz que, correndo a cavalo e desarmado, derrubou um avião com apenas duas bolas enroladas em pedaços de couro e uma corda feita também de couro bovino trançado. 
É ou não é enxerto ideal para O Senhor dos Anéis? 
    Um dia passei por uma rua que não conhecia, do carro enxerguei o Azevedo cortando a grama de uma casa bonita e organizada, eu estava grávida do Joseph e de mudança marcada para Erechim. 
Me arrependo tanto de não ter parado para me despedir do amigo enquanto dava tempo.

Fotos: Frente e verso do postal que recebi de Azevedo

Postado por Geraldo Generoso, 
em 8 de janeiro de 2012 01:47
Giane, 
cada lugar tem uma aura, e nunca é monocórdia nem unicolor.
Você retratou bem essa realidade. A silvestria da cidade grande e um evento moderno no interior gaúcho. Isto também vale para o Brasil, com cada região sempre a nos oferecer o belo e o inusitado. Você dispõe de um estilo de muita propriedade e só seu, por sinal, muito atraente e diferenciado do que geralmente a gente lê por aí. 
Parabéns. 
Geraldo 

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