02 junho 2013

Cigarro

Ela era uma moça de pernas finas e magricela quando eu nasci. Adorando meu pai - é o que lembro - respeitando e sendo adorada e respeitada. Nunca uma briga, nunca uma ofensa de nenhum lado. Duas pessoas diferentes que se uniram em uma identidade só. 
Respeito, é o que vi, crescendo. 
Me estimulou a questionar analisando. 
Amargura nunca houve neste ser. 
Engolir talvez seja sua falha. Os desgostos são seus. 
Pela simbiose meu pai saca, vai lá e reajusta a máquina, é o que faz para ampará-la em sua fraqueza - a de engolir. 
Quando eu tinha doze anos o meu velho avô, pai de meu pai, veio, muito doente, morar conosco. 
O pai do meu pai; caudilho, velho galo fino de esporas calejadas e mortais. Um homem do seu tempo, criado nas valentias, que respondeu à vida afinando a resposta agressiva. Sendo assim, meu pai desde muito cedo viu de tudo. O suicídio de uma irmã, que por não suportar os maus tratos resolveu desistir, a morte de minha avó, o desamparo dos irmãos e o crescimento a "Deus dará", que puxou-lhe a fibra e fez com cedo se tornasse aguerrido e determinado, porque meu pai quando se determina ninguém segura nem demove, e meu pai recebeu este pai velho e doente em casa, por circunstâncias fatais, veio o caudilho convalescer em nossa casa. 
Minha mãe, feliz por ter uma família maior, orgulhosa do sogro guerreiro, foi toda atenção, as modificações foram feitas para adaptar a família e a casa ao novo membro. Daqueles dias, hoje só posso lembrar juntando o comentário da Fernanda Lima, que diz que não porque uma pessoa fica velha é que muda de caráter. Pois o vovô, ocupando o quatro do meu irmão (meu irmão passou a dormir na sala) esperava meu pai sair para o trabalho para mostrar o mau gênio, eu ia para a escola e não via o que acontecia pela manhã, mas as tardes eram um circo monstruoso. Tão debilitado que não saia da cama, não aceitava a vasilha destinada a cuspir o produto das tosses que o enfisema pulmonar em estado adiantado ocasionava. E minha mãe é quem limpava, limpava tudo, na época em que minha irmã, Luciana, de recém havia nascido. Ela caprichava nas refeições para acalmá-lo, se esmerava na organização do quarto e ele gritava durantes as tardes tudo o que de mais feio um ser pode dizer a outro. 
Da boca de meu avô foi a única vez que ouvi palavrões berrados contra alguém na minha casa. E acontece que era contra minha mãe, que atordoada e humilhada não reagia. 
E como reagir é um bom enigma que me proponho quando lembro o que o cigarro pode fazer. Eu me encolhia no meu quarto com medo da terrível sombra de do que tomou nossa casa. Algumas vezes entrei no quarto pensando acalmá-lo ou para levar água e ele me expulsava com desprezo que me doía muito: não sabia nem o meu nome. 
Estávamos reféns, meu irmão, eu, o bebê e minha mãe. Durante a noite só havia os ataques de tosse e vômitos, meu pai acudia, mas nunca ele alterou a voz com meu pai, ciente que estava de que podia se esbaldar no mau gênio somente conosco, não por que meu pai precisasse se impor, apenas porque meu avô tinha a covardia dos machistas espancadores de mulheres e crianças, mas que não se atrevem com que pode com eles. 
E assim foi que minha mãe fugiu com Luciana no colo para a casa da vizinha Dalben numa tarde em que a chuvarada de palavrões se tornou discurso: "Ia falar com Basílio para expulsar de casa aquela mulherzinha! Vagabunda!" 
Quando meu pai chegou do trabalho a vizinha veio e conversaram em voz baixa, meu pai saiu e retornou tarde da noite. Fora conversar com a irmã e levaram o vovô para casa dela. 
Essa memória é uma cicatriz de relevo. Parece que nunca mais recuperamos a alegria amena que havia antes. É certamente porque praticamos a arte do "e se ". E se tivéssemos tentado doutra forma? Então se cogita, se escarafuncha nas possibilidades. 
Quanto a mim, a única certeza é de que os pelos se arrepiam e ainda posso ouvir os gritos. A mãe parece que esqueceu, quando falamos na história familiar ela conta das batalhas, da batalha da ponte que "teu avô contava que o pai dele participou". É estranho vê-la falar sem rancor algum e invariavelmente pergunto em que ocasião conversaram, ela e meu avô, ela responde que antes. Quando ele estava são. Nunca acredito, ela sempre repete: -Ele nunca foi santo, mas tinha umas conversas boas de se ouvir quando eu o conheci. 
Meu avô faleceu uns quinze dias depois que foi para casa de minha tia. Meu pai sofreu, minha mãe ficou triste e eu e meu irmão, calamos. Eu nunca ouvi minha mãe falar mal de alguém, e oro por ela todos os dias, talvez meio Seicho No Ie, talvez tenha aprendido lá, mas eu digo:"Obrigada mãe, eu amo você", aqui, em São Paulo a miles de quilômetros, e ela sempre diz que passou a sofrer do coração depois que me mudei "para tão longe". Eu penso que é porque ela tem o costume de engolir, mas aceito a culpa como uma declaração de amor maternal. O fato é que a minha gratidão é maior por ela ser afável, por não ser ressentida, nem amarga. Já pensou, se criar de mãe amargurada? 
Ela, a Hilda, se critica alguém é a título de notícia, ou seja, frisando o caráter de impermanência no estado de engano. Levanta logo os prós da personalidade do criticado, pesa, avalia e finaliza suavizando a fala com alguma tirada bem humorada. Geralmente repete um mote que o Marcelinho desenvolveu aos 5 anos: 
-Vamos mudar de assunto? Vamos falar de flores?

Comentário em 03/06/13:
Lindíssimo, Giane! 

Um casal mais que especial: A base dessa família de artistas de tanta sensibilidade. 
Parabéns e vida longa aos dois! bj,
Regina T. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindíssimo, Giane! Um casal mais que especial: A base dessa família de artistas de tanta sensibilidade. Parabéns e vida longa aos dois! bj,Regina T.