06 junho 2013

Era da Desfragmentação - Comentário sobre Sombras do Império

Se não estivesse tão perturbada por certas emergências, pensaria que a leitura do livro de JG Ballard, Sombras do Império, me balança. 
Seca, dura, profunda, terna. Escrita em um romance insuspeito, situado durante e logo após a II Guerra. Se eu não andasse tão amarrada pelos percalços,tão preocupada com os protestos, e, por outro lado com a apatia, sairia a caminhar no final da tarde e desconfiaria que o Paraíso pode ser onde estivermos, se soubermos chamá-lo. É, eu sei. 
E leio Sombras do Império nas últimas duas noites, entendendo em que contexto a Inglaterra recebeu seus cidadãos vindos da China após a estadia em campos de concentrações japoneses, especificamente o de Lunghua, concluindo que os governos e seus mecanismos continuam os mesmos; após um colapso nada está adequado ao estado de ânimo que só passando pela crise é que se define, estabelece. Portanto, como prever, prover as necessidades, se mais que do corpo, são as chagas da alma que mais atormentam os sobreviventes?
Saber que as sombras e ameaças nucleares se avolumam não significa estar consciente das consequências de um conflito hoje em dia, e quem bispa antes jamais pode, ainda assim, preparar-se  adequadamente para tal, nem que seja gaúcho, criado na cultura da necessidade de um bunker no quintal, "para se..." 
Talvez Franz Kafka ainda seja o maior retratista da organização humana, ele, que em em 1926, escreveu O Processo, livro de movimentação fortemente surreal. 
Costumo afirmar que nada que eu tenha lido define tão bem as estruturas burocráticas que nos apoiam, sustentam e mais que tudo, aterrorizam. Quem já leu O Processo costuma sorrir de cabeça ladeada e invariavelmente me perguntar porque. 
Responder não adianta. Já leu, sabe do que estamos brincando.
De viver durante as frestas que nos são concedidas. 
E se sempre foi assim minha inconformação advém do fato de nunca antes ter acompanhado um tempo de tamanha arrogância e tão abissal prepotência. Falácias!
 Hoje, se estivesse mais tranquila observaria o horizonte, consciente de que a casca do mundo, enrugado e áspero, ao entardecer tende a suavizar-se pela densidade atmosférica ou pela poluição, que serenamente, ao longe, dilui os contornos transformando tudo em litoral e mar longínquo. Talvez envenene pulmões, e não há antídoto, nada a fazer, só mutagenizar e retornar subindo as arestas, descendo pelas fendas, talvez, chegando do passeio que dei ou não dei, me ponha a organizar um conto, ou limpar os cantos e esperar os filhos. 
Com sorte, amanhã não despertar às 4:00h para finalizar Sombras do Império, que me desespera tanto. 
Sem tudo isso, em época mais propícia me poria a pensar nas meninas da família, em todas meninas. Nas mulheres, minhas irmãs, em tantos braços, abraços, sonhos e senhas de lágrimas, de dentes, sem dentes, formatos múltiplos para ansiedades básicas idênticas: acolhimento, amor e respeito. 
Sorte de quem tem - grupo, não! - sorte de ter fora do grupo também. 
Eu penso na Bárbara, eu penso na Brenda, na Manuela, nas filhas dela, tuas netas, nas meninas que vejo nos parques acompanhadas por suas mães, com sorte. 
Em certo momento, J G Ballardd escreve o que nunca vi escrito, é sobre a falta de sorte. Depois de crescido, o personagem principal reencontra a antiga babá, amargurado pensa que "ser criado por empregados, supostamente um privilégio de rico, na verdade expunha a criança à mais impiedosa manipulação, e eu não tinha mais vontade de ser manipulado novamente, fosse por medo, fome ou sexo".
Mas foi, e será, pois todos têm interesses, cabe a ele escolher os que deseja alimentar, intercambiar, coube a ele escolher o que mais lhe interessou, e parece tão correto e revitalizante o que determina, traz o sol ao romance e brinca com os meninos por entre embalagens gigantes de produtos cenográficos nos jardins dos estúdios da pequena cidade de Shepperton, então ele amadurece, entendendo que a sorte está nas frestas, nos momentos, como ao acompanhar o nascimento de sua terceira filha:
"Os cabelos negros estavam úmidos e bem partidos, como se uma natureza cuidadosa houvesse arrumado a criança para a sua primeira aparição no mundo. O rosto inteiro havia saído, uma testa alta, miniatura de um nariz e de uma boca, e os olhos fechados, como que apertados pelo tempo, pelas eras infinitas que haviam precedido aquela criança no reino animal.
Despertando para o sonho profundo da vida, ela não parecia jovem, mas infinitamente velha, trazendo milhões de anos na regularidade faraônica das faces, das velhas pálpebras e narinas. Seus lábios estavam serenos, como se ela houvesse suportado com paciência a imensa jornada através do universo até aquela casa modesta, onde a mãe a aguardava.
De repente ela se tornou jovem outra vez. Num jorro final de fluídos, um bichinho rosado e sem pelos estava aninhado nos braços da parteira Bell.
...
Olhei para o neném. Ela mudara mais uma vez, estava mais rosada e mais viva. Mesmo dormindo movimentava os lábios, como se tentasse lembrar uma mensagem que lhe fora confiada pelas invisíveis potestades da crianção. No espaço de poucas horas vivera vários papéis: antes mensageira de eras arcaicas, ela se tornara um fugidio espírito aquático batizado no líquido amniótico da mãe, para se tornar, enfim, a criancinha sonhadora cuja pele se crispava ao contato com a luz e o ar."


O império do Sol de J G Ballard foi publicado no Brasil pela Editora Record em 1991

Foto: Cetro/chave do anime Sakura Card Captors, realizado sob encomenda pelo cosplayer e aderecista Tobito Kanavion. 
O objeto tem o tamanho de uma moeda de dez centavos e está ligado a várias frases de efeito no anime.
O personagem Kero, diz ao entregar o báculo a Sakura:
"Ó chave do lacre! Tem alguém aqui disposto a receber a missão. É uma menina, seu nome é Sakura. Ofereça seus poderes a esta jovem. Liberte-se!"





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