30 junho 2010

Carta de apresentação de outubro de 2008


Mas em verdade, a verdade vos digo; escrevo mesmo é para agradecer pela oportunidade de tanto crescimento. Que importa o meu crescimento à quem quer que seja, não é? Com as novas descobertas no campo da física, temos que levar em conta que se um indivíduo expande internamente em decorrência do estímulo de outro, e se esse espaço interno é preenchido com a matéria negra da realização e felicidade palpitante, a possibilidade de quem contribui para isto, ser um benfeitor, existe!
Amanhã entrego dois quadros e duas esculturas para a seleção do Salão de Pinheiros, este que estou terminando é uma peça de pedra no qual inseri um chifre. A outra escultura é a da vaquinha (terneira), que a Angela Bassan vazou em fibra para mim, o resultado me agradou, e é uma peça plasticamente interessante mesmo quando vista por baixo. Mais duas telas, um retrato de menina “Não Tenho Medo”, pintava enquanto lia pela primeira vez o Memórias Póstumas, do Machado. Já estava com o quadro estruturado quando cheguei ao delírio do Brás Cubas, onde ele conta que:
“ Ultimamente, restituído á forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou.
Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança,
mas,dentro em pouco a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi
a interroga-lo, e, com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
Engana-se replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. Insinuei que deveria ser
muitíssimo longe;mas o hipopótamos não me entendeu, ou não me ouviu,
se é que não fingiu uma dessas coisas;e, perguntando-lhe, visto que ele falava,
se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Baleão,
retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadrúpedes:abanou as orelhas.
Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar
que sentia umas tais cócegas de curiosidade por saber onde ficava a origem dos séculos,
se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo
se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos:reflexão de cérebro enfermo.
Como ia de olhos fechados, não via o caminho;lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava em uma planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar mas apenas pude grunhir esta pergunta:
-Onde estamos? ”
Assim vai minha tela, segue em frente a descrição de Brás Cubas e me pergunto:
Onde andei, o que fiz até agora que não havia lido Memórias Póstumas?
Quando passei no sebo Papagali da rua Professor Afonso Bovero e comprei A morte de Ivan Ilitch, me perguntei ainda: Como posso ter passado sem ler Tolstoi até agora?
Estaria eu vivendo Tolstoi?
Fiquei sentada lendo na academia a tarde toda com a desculpa de acompanhar o Joseph.
Ergo os olhos do acabado A Morte de Ivan Ilitch e vejo uma mulher de pernas brancas e roupa preta no fundo do espelho do salão de artes marciais. Uma mulher interessante para uma segunda olhada...
Acabou!
Na frente da mulher dois grupos de crianças que ainda não sabem ler. Um grupo brinca de cabo de guerra e o outro aprende judô. Meninos vestidos de quimono branco, meninas de tutu, refletidos no espelho - mais dois grupos.
No fundo, a mulher que sobreviveu.
Sou eu.
Sobrevivi e gosto de me ver com meu filho brincando em dobro na minha frente.
Quantas vezes tive que morrer para chegar a ver esta imagem?
O menino serelepe e iluminado se aproxima balançando os cabelos sedosos.
Vem acompanhado de um amigo e perguntam:
- É ene a til ó, que se escreve ou ene a ò til?
Sorriem um para o outro e viram as costas sem esperar resposta.
Ainda com lágrimas escondidas, choro pela morte de Ivan Ilitch e pela emoção de perceber que estou viva, vivo realmente. Eu não percebi enquanto fugia...
Hoje, sofrendo por Ivan Ilitch - sobrevivi!
Olho para o espelho novamente e a imagem dupla do meu filho de seis anos saltita sorridente brincando no tatame. 
De que vale ter escrito na capa do livro, se não contasse à alguém?

Para ver Piotr Beczala na aria "Dies Bildnis ist bezaubernd schön"
Die Zauberföte, ative o link ou clique no título:
http://www.youtube.com/watch?v=-L9U_AfY34g

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