17 junho 2012

Senhores Alvarícios, Madames Tutli-Putlis e as Donas Beatrizes

O Senhor Alvarício faleceu, mas até o último momento lutou positiva e bravamente contra o câncer. Hospitalizado, uma semana antes de desencarnar pediu para chamarem dona Beatriz, sua patroa de muitos anos, a dona da casa que alugo há seis anos. Ela não foi porque não teve tempo. É proprietária de muitos imóveis, ocupada demais com sua administração. 
O senhor Alvarício, meu amigo e amigo da minha família, tenho que fé que sereno passou para o outro lado, envolto na paz que conquistara com sua fé: Testemunha de Jeová. Os filhos logo a seguir internaram sua esposa, mãe deles em uma clínica, e eu precisei escrever o texto abaixo quando soube do seu falecimento através das próprias frias palavras de dona Beatriz em setembro de 2010. 
Não tive vontade de te contar abertamente sobre a passagem dele, pois quem sabe onde já andaria o senhor Alvarício, para que a maioria de nós nos falássemos dele como alguém que deixou de existir, tornou-se somente personagem de uma história passada, ainda mais alguém já pronto e sábio como provou ser através de palavras e atitudes! 
Sabe-se que para estes, a inexorável e ineludível Ordem Universal oferece um desencadeamento de novas missões e jornadas rapidamente. Em paz, seu Alvarício, siga em paz, prossigamos em paz nossa caminhada rumo a construção, edificadores que somos, apesar de eu também já estar sentindo as unhas de dona Beatriz, não nos compete julgar nem condenar, a vida é um quadro mais abrangente do que o que vislumbramos do nosso atual patamar e ao nos desligarmos de brutalidades e crueldades devemos sentir segurança e gratidão nos desígnios, pois antes ser ocasionalmente vitimado, digo não passivamente, apenas ocasionalmente e conscientemente, do que ser por escolha e medo das mudanças, atrelado a dureza de espíritos vampirescos, carrascos e mesquinhos. 
Deus nos tem em sua palma amável e segura, sigamos na auto-reforma e aparentemente infindável edificação do mundo melhor!
Então, repito:

"O senhor Alvarício morava lá em Minas, com a família nas terras de sua tia,
plantavam fumo e cana.
Sua tia era uma negra alllta e fumava cachimbo como o quê.
Ela tinha casa de comércio. 
Era no entroncamento dumas estradas importantes feito o quê! 
Quando crianças, o senhor Alvarício e eu adorávamos ver os grandes cozinhando o caldo de cana para virar melado. 
Melado eu, ele, pé-de-moleque. 
No Rio Grande do Sul os grandes só faziam o melado e já reclamavam pelo resto da vida da trabalheira que dava, fazer fogueira e ficar o dia todinho mexendo numa pá comprida aquela fervura que aquecia até o mato onde eu corria com as primas na chuva... sim, porque ninguém jamais fez melado em dia quente, que até loucura tem limites! 
Lá em Minas, o senhor Alvarício não corria na chuva, ele disse que trabalhava desde cedo, seus pais tinham a plantação de cana-de-açúcar e no engenho, trabalho não faltava, ainda mais tendo tia negociante. 
Era uma negra alllta, lá de Minas...e era muito viva a tia dele. Próspera! Na sala onde ela armazenava o fumo, as paredes eram pretas e impregnadas do alcatrão. Só de falar seu Alvarício parece que sente o cheiro daquele fumo saudável - sem veneno nenhum! O engenho foi definhando porque era pequeno, se fosse hoje era uma beleza, veja o quilo do açúcar mascavo a doze reais?! 
Então ele cresceu e veio para São Paulo, veio morar com uns tios e trabalhou num aviário - mas ô coisa mais trabalhosa dona Giane, e fedida é galinha, dá um incomodo! Aqueles bichos não gosto não, dona Giane, aquilo parece que nem pensa! Então aprendeu o oficio de pedreiro e foi se aprumando. 
Agora está morando lá pros lados de Perús, que a casa da Politécnica deixou pro filho solteiro. O casado vai muito bem, é profissional formado em programação de computadores, viaja, se diverte e vai cada vez melhor na vida. 
Em Perús está bem a nova casa, é bom de morar e uma sobrinha cuida da sua esposa quando ele sai, vai ao médico ou trabalhar. A esposa está doente e vive tentando fugir, deu Alzheimer nela e se tornou uma pessoa muito nervosa. Ele ficou doente também, mas fez quimioterpia e está melhorando, já estava voltando a ter cabelo, só era bem desagradável sentir enjoo depois das sessões. 
Seu Alvarício é testemunha de Jeová, no meio da tarde faço café e tomamos comendo pamonha mineira, guardo da doce e da salgada, congelada pra quando ele vem, gosto de ouvir as leis da religião dele. Sabe muito do mundo, tem uma flexibilidade e benvolência para julgar os estropícios que comentamos, que é um colosso! Trabalha para a imobiliária, e na primeira vez que veio, logo após a mudança eu não encontrei a chave para abrir a porta, ele falou para eles que talvez eu tivesse ficado com medo de abrir a casa por ele ser negro. Quase morri de vergonha. 
Na segunda vez que veio levei-o para ver a Nossa Senhora Aparecida padroeira do Brasil, pretinha da Silva, que foi a primeira moradora da casa que se instalou na capelinha, no melhor lugar da cozinha, vendo tudinho, cuidando e abençoando também... Ora, veja se justo eu que sei das histórias das melaninas seria burra de ter preconceitos?! Seu Alvarício se amansou e nos tornamos amigos. Pinta, conserta e proseia. Quatro anos... Na última vez trouxe ajudantes, ambos foram seus aprendizes, que agora estão por conta, quando ele precisa eles o socorrem. 
Seu Alvarício conta que na época que veio para São Paulo ainda passava tropa de gado na rua San Gualter, que as marginais não eram asfaltadas e o pessoal tomava banho no rio Tietê... Naquele tempo... 
Hoje faleceu minha tia Julia, ela era branca, baixa e braba, quando eu passava correndo por ela nos dias de fazer melado, ela me aplicava cada beliscão queimador nos ombros! 
Apagou-se seu lume hoje cedo, de repente, aos 78 anos. 
Há tantos anos que não a via! 
Pobres das minhas primas, a tia Julia era uma gaúcha batalhadora e positiva como ninguém.
Será que se encontrará com a tia alta e negra do senhor Alvarício e juntas falarão dos sobrinhos que foram para São Paulo?"


Na foto, recebendo a fotógrafa ijuiense Fernanda Rodrigues e seu Alvarício entregando a última obra e se despedindo da Wyllo. 


Para ver cinema de Bordas do Canadá, conhecer a Madame Tutli-Putli, clique no título da postagem.

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