02 abril 2013

Sobre os Diletantes





"...ainda hoje todo o pesquisador luta entre os fogos cruzados do público e do mundo especializado. Os relatos de Schliermann tinham um público diferente dos das Circulares de Winckelmann. O homem mundano do século XVIII escrevera para as pessoas cultas, para o pequeno círculo dos preferidos, para os que possuíam museu, ou, pelo menos, obtinham acesso a eles porque pertenciam ao mundo de uma corte. Esse pequeno mundo foi sacudido pela descoberta de Pompéia, ficava encantado com a escavação de uma só estátua, mas o seu interesse nunca ultrapassava o ambiente restrito do estético-artístico. A influência de Winckelmann foi penetrante, mas precisava do veículo dos poetas e escritores para irradiar da estreita zona da cultura toda a profundeza e largura do seu tempo.
Schliemann influía diretamente, sem intermediários, dava publicidade a cada nova descoberta, e ele próprio era o que mais se maravilhava diante dessas descobertas. Suas cartas corriam o mundo inteiro e os seus artigos apareciam em todos os jornais. Scliemann teria sido homem de rádio, do cinema, da televisão se já existissem na época. suas descobertas em Tróia provocaram um torvelinho não só no restrito mundo da gente culta, mas em toda parte. As descrições de estátuas por Winckelmann haviam interessado aos estetas e encantado os entendidos. As descobertas de ouro de Schliemann interessavam a homens de uma época que na sua terra se chamava "época dos pioneiros", homens que vogavam sobre a maré da prosperidade econômica, que apreciavam o "self-made man", que possuíam bom senso e se colocavam ao seu lado quando os "puros cientistas" voltavam as costas aos "leigos".
Um diretor de museu alguns anos depois das reportagens de Scliemann de 1873, escreveu: "Na época dessas reportagens reinava grande excitação tanto entre os eruditos como entre o público. Em toda parte, em casa e nas ruas, nas diligências e nos vagões de estrada de ferro, se falava em Tróia. Todo mundo estava cheio de espanto e interrogações".
Se Wickelmann, como diz Herder, "apontara de longe o segredo dos gregos", Schliemann já havia desvendado a sua pré-história. Com incrível arrojo havia tirado a Arqueologia da luz do petróleo dos gabinetes de estudo para a luz do sol de um céu helênico e resolvido a questão de Tróia com a pá. Rompendo o circulo da filologia clássica, dera um passo para o interior da pré-história viva e alargara uma ciência clássica em torno da pré-história.
A rapidez com que foram tomadas estas medidas revolucionárias, a acumulação dos resultados, a personalidade dúbia de Schliemann, não de todo comerciante, não de todo erudito, e, não obstante, ambas as coisas com extraordinário êxito, o "feitio publicitário" de suas publicações chocaram o mundo internacional dos sábios, e entre eles, particularmente, os alemães.
A extensão da revolta pode ser avaliada pelo número de 90 publicações sobre Tróia e Homero, que, nesses anosa das atividades de Schliemann, saíram rapidamente dos gabinetes de estudo. O principal ponto de ataque contra o qual os eruditos assestavam suas baterias era o diletantismo de Schliemann.
No decorrer da história das escavações sempre encontraremos novamente os arqueólogos profissionais a amargurara a vida daqueles que apenas estavam dando o impulso para o novo salto no escuro.
Visto os ataques a Schliemann serem  de importância básica, aqui vão algumas palavras e citações de shopenhauer:
-Diletantes, diletantes! Tais são os que praticam uma ciência ou arte por amor a ela ou por prazer nela, 'per il loro diretto'; assim são chamados por desprezo por aqueles que a ela se dedicaram por amor ao lucro, porque a eles só deleita o dinheiro que possam ganhar com isso. Esse menosprezo baseia-se na sua infame convicção de que ninguém se dedicará seriamente a uma coisa quando a isso não o estimule, a necessidade, a fome ou qualquer outra cobiça. O público é desse mesmo espírito e, por isso, dessa mesma opinião: dai nasce seu absoluto respeito pelos 'homens de especialidade' e sua desconfiança dos diletantes. 
Na verdade, para o diletante, a causa é o objetivo, ao passo que para o especialista, como tal, é apenas um meio; mas só se dedicará a uma causa com toda seriedade aquele que por ela se interessar imediatamente e se ocupar dela com amor, praticando-a con amore'. Desses tais, e não dos servos do salário, sempre partirão as maiores coisas.
O Prf. Wilhelm Dörpfeld, colaborador, conselheiro e amigo de Schliemann, um dos poucos especialistas que a Alemanha colocou ao seu lado, escreveu ainda em 1932: Contudo, nunca compreendeu a zombaria com que vários eruditos, e especialmente muitos filólogos alemães, acompanhavam os seus trabalhos em Tróia e em Ítaca. eu mesmo sempre lastimei esse escárnio com que alguns grandes sábios, mais tarde, contemplaram também minhas escavações em lugares homéricos, e o considerei não só injustificado mas também anticientífico!
A desconfiança do "especialista" pelo "outsider" bem sucedido é a desconfiança do burguês pelo gênio. O homem de carreira assegurada despreza o pesquisador de zonas inseguras e que não faz disso meio de vida. esse desprezo é injusto.
Por mais longe que remontemos à pesquisa científica, não é difícil verificar que um número extraordinário de descobertas foi feito pelos "diletantes", ou até, "autodidatas" que, levados pela obsessão de uma ideia, não sentiram o freio de uma formação especializada., as vendas do especialismo, e saltaram por cima das barreiras erguidas pela tradição acadêmica.
Otto Von Guericke, o maior físico alemão do século XVII, era jurista de profissão.
Benjamin Franklin, filho de um modesto fabricante de sabão, tornou-se, mesmo sem formação ginasial e universitária, não só um político ativo (para o que podem bastar algumas qualidades menos importantes), mas mas também um sábio de valor.
Galvani, o descobridor da eletricidade, era médico e, segundo prova Wilhelm Ostwald em sua "História da Eletroquímica", deveu sua descoberta justamente a deficiência de seus conhecimentos. Fraunhofer, autor de eminentes trabalhos sobre o espectro, até aos 14 anos não sabia ler nem escrever. Michael Faraday, um dos mais importantes naturalistas, era filho de um ferrador de cavalos e começou como encadernador. Julius Robert Mayer, descobridor da lei da conservação da energia, era médico. Também era médico Helmholtz, quando, aos vinte e seis anos, publicou seu primeiro trabalho sobre este mesmo assunto.
As obras mais notáveis de Buffon, matemático e físico, tratam de geologia.O homem que construiu o primeiro telégrafo elétrico foi o professor de anatomia Thomas Sömmering. Samuel Morse era pintor, assim como Taguerre. O primeiro criou o alfabeto telgráfico, o  segundo inventou a fotografia. Os obcecados criadores do aerostato dirigível Zeppelin, Gross  e Parseval, eram oficiais e não tinham nenhuma ideia sobre técnica.
A lista é infinita. Se se afastassem estes homens da história das ciências, toda a sua estrutura desabaria. E, contudo, no seu tempo tiveram de suportar zombaria e escárnio.
A lista prossegue na história da ciência que aqui tratamos. William Jones, que forneceu as primeira boas traduções do sânscrito, não era orientalista e sim relator-chefe em Bengala. Grotefend, o primeiro decifrador de uma escrita cuneiforme, era filólogo clássico. Seu sucessor, Rawlinson era oficial e político.  Os primeiros passos no longo caminho da decifração dos hieróglifos, deu-os Thomas Young, médico, e Champolion, que chegou à meta, era realmente professor de história. Humann, que desenterrou Pérgamo, era engenheiro de estrada de ferro.
Basta esta lista para o que deve ser dito aqui? 
Não se pode especificar claramente tudo aquilo que distingue um especialista. Mas o que importa não é o resultado, desde que os meios sejam limpos?
Não merece os "outsider" a nossa especial gratidão?
Sim, Schliemann cometeu graves erros nas primeiras escavações. demoliu antigas construções que eram preciosas, destruiu muralhas que teriam sido indícios importantes. contudo, o grande historiador alemão E. Mayer concedeu-lhe isto: Para a ciência ficou demonstrado ter sido altamente benéfico o procedimento não metódico de Schliemann no sentido de ir direto ao solo primitivo. Numa escavação sistemática dificilmente teriam sido descobertas as camadas mais antigas da colina e, com isso,  essa cultura que designamos como a propriamente "troiana".
Foi uma trágica fatalidade o fato de terem sido erradas quase todas as suas primeiras interpretações e datas. Mas Colombo, quando descobriu a América, julgou ter encontrado a Índia. Acaso isso diminui o seu feito?



Extraído do livro Deuses Túmulos e Sábios, 
de C W Ceram, publicado  pelo Círculo do Livro

Foto: Rosa no jardim do meu prédio.






Um comentário:

Ivani Medina disse...

Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.

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