17 novembro 2012

Os Deuses que Fizeram o Céu e a Terra


"No princípio, Deus criou o Céu e a Terra." Foi assim que se traduziu, mas a tradução não é exata. Por pouco instruído que seja, não há homem que não saiba que o texto diz: "No princípio, os deuses fizeram, ou os deuses fez o Céu e a Terra."
Qualquer homem, por pouco instruído que seja, saberá isto? 
Voltaire enganou-se, ou as coisas mudaram depois de Voltaire? Já me tem sucedido encontrar homens que se julgam altamente instruídos, e que passam por os ser porque possuem diplomas que o justificam, e que nunca abriram uma Bíblia, o que não os impede de se dizerem e considerarem voltairianos como se consideravam "existencialistas" os simpáticos jovens que nunca tinham aberto um único livro de Sartre mas conheciam todos os empregados dos bares de Saint-Germain-des-Prés, por volta de 1846.
Pode-se, não há dúvida, passar por voltairiano quando se tem um espírito divertido, como se pode ter reputação de "humanista" quando se faz alarde sobre uma dúzia de ideias acerca do "obscurantismo da Idade Média". Mas é preferível folhear alguns livros a que Voltaire se referia.
"A terra era Tohu-bohu e vazia(...) Tohu-bohu significa precisamente caos, desordem; é uma dessas palavras imitativas que existem em todas as línguas, prossegue Voltaire.
Os deuses do texto bíblico começaram por fazer com que a luz regressasse; quando a luz voltou, dedicaram-se a restabelecer a ordem em substituição do tohu-bohu; iniciaram, primeiro, o novo ciclo da vida das plantas e depois,  o dos herbívoros, só voltando a dar vida aos carnívoros quando lhes estava assegurada a alimentação.
A ordem segundo a qual os deuses do texto bíblico completaram a sua obra é a ordem lógica. 
Lógica se tiver aceite o postulado inicial do Cataclismo (plausível) provocado pela glaciação (certa), e que, se efetivamente se verificou, não pôde ter consequências diversas das descritas no texto bíblico.
Esta arrumação dá-se em seis etapas, que o Gênesis denomina "dias" e que se apresentam como seis etapas de um plano de Grandes Obras.
O Tohu-bohu era grave, se se crê no texto bíblico; a água evaporada em nuvens só se precipitou sobre a Terra, para reconstituir os cursos d'água e os mares na segunda etapa dos trabalhos; a primeira etapa foi toda consagrada a trazer para a Terra a luz do Sol.
O programa da terceira etapa é muito carregado.
Começa pelo encaminhamento das águas caídas do céu, que, a pouco e pouco, se transformam em cursos de água e em rios; continua pela reativação, nos pântanos assim secados, das plantas e das árvores de fruto.
Intervém então, segundo o texto biblico, o artifício literário do "regresso ao passado" que o cinema vulgarizou com o nome de flash-back; no capítulo II do Gênesis (versículo 4 b à 7), lemos com efeito, que os deuses formaram o homem "da poeira do solo", Antes que tivesse germinado qualquer erva nos campos. 
O homem, o único animal que sobreviveu pelos seus próprios meios ao Cataclismo, surgiu das suas grutas ao mesmo tempo que os vindos-do-céu secaram os pântanos, a acreditarmos no texto bíblico.
Insisto: a acreditarmos no texto bíblico, porque ele constitui o fecho da abóbada de todo o raciocínio que exponho. 
Se o decompusermos, verificamos que esse raciocínio é simples.
Isto se o Cataclismo se deu efetivamente cerca do ano 21.500 a. C., e se as suas consequências foram as do tohu-bohu, descrito no texto bíblico. Mas poderá o texto bíblico inventar, com todos os pormenores, um cataclismo e suas consequências com os dados da geologia moderna? 
É evidentemente pouco provável.
O texto bíblico é, pois, pelo menos um reflexo de acontecimentos reais... o que quer dizer que é mais do que provável a realidade do Caaclismo. Mas isso quer dizer também que, durante vinte milênios, a tradição oral preservou uma descrição suficientemente fiel para ser reconhecível pela geologia moderna.
Uma tradição oral tão fiel à realidade como esta poderá obter-se colando sobre a descrição histórica deuses completamente inventados? É concebível. 
Mas estes deuses outra coisa não fazem que submeterem-se sem nada falsearem, aos fatos reais transmitidos sem alteração grave. O texto bíblico descreve-os como reorganizadores das condições de vida normais segundo um plano de Grandes Obras executando em seis etapas idênticas às que adotaria, os técnicos em situação idêntica.
Poderiam os deuses ter saído equipados, armados, da imaginação dos homens da Pré-História?
...É pois possível que os deuses mencionados no texto bíblico sejam pura invenção.
Mas se assim é, preciso será que todos caiamos de joelhos, porque seremos testemunhas de um milagre. Veremos efetivamente os nossos antepassados inventarem sem a intervenção dos deuses, a cosmonáutica, a física, as técnicas, a geologia, a biologia e a arqueologia modernas... e inventá-las alguns milênios antes de se ter descoberto que bastaria adicionar um pouco de estanho ao cobre para obter o prestigioso bronze.
...O primeiro traço notável do retrato-robot que podemos traçar é o fato de que os Celestes foram pouco numerosos. A leitura de cada um dos Mitos deixa-nos a impressão de que eram entre trinta e quarenta. No texto bíblico, os cabalistas contam quarenta e nove nomes divinos, alguns dos quais  duplicados, o que nos reconduz sempre ao referido número total. Estes deuses formavam casais cuja vida familiar só excepcionalmente é descrita, e em geral as descrições são embelezadas. Trinta a quarenta pessoas são os efetivos da tripulação prevista pelos projetos ainda utópicos, duma cosmonáutica humana, quando verdadeiros cientistas se divertem a meter a sua colherada no assunto.
...A promessa de que, um dia, o homem poderá igualar-se aos deuses figura, muito especificamente, na Tradição sobre que se fundam o judaísmo e o cristianismo.
Tal promessa parece tão perfeitamente irracional à ótica do século XIX que não sobreviveu ao anticlericalismo então triunfante. 
Com o receio do ridículo, os espíritos medievais habituaram-se a usar uma surdina em tudo que na Tradição judaico-cristã se encontra em contradição com as certezas materialistas que fazem parte do espírito humano.
Cem anos de surdina bastaram para fazer esquecer o que "todo homem instruído" sabia no  século XVIII de Voltaire.
Eu sou um homem da Idade Média. 
Verifico a Ressurreição do Medievalismo, que varre os últimos miasmas de um século XIX cujo espirito acanhado se deleitava com certezas. O século XIX tinha certezas às treze por dúzia.
No século XIX cientistas de grande reputação demonstravam que nenhum avião poderia jamais voar (porque para levantar o peso de um avião seria preciso que o avião transportasse um peso de gasolina que, acrescentado ao peso do avião...). Quando no fim do século XIX, se apresentou aos membros do Instituto um fonógrafo, distintos cientistas apelidaram o apresentador de impostor ventríloquo. 
Em 1922, ainda o século XIX não morrera, a maioria dos membros da Academia das Ciências recusou ouvir a exposição de um charlatão chamado Albert Einstein. Hoje...
Perante tantas e tão soberbas certezas, que querem os leitores que a Tradição tivesse feito? Calou-se. aquilo que "todo o homem um pouco instruído" sabia tornou-se "esotérico", quer dizer, reservado aos "iniciados"...não porque a Tradição se tivesse posto à jogar sociedades secretas, mas muito simplesmente porque os espíritos deformados pelo século XIX não queriam escutar.
Não existe qualquer espécie de "esoterismo", qualquer espécie de "secreto", nenhuma "iniciação" a invocar para ler no evangelho Segundo São João (X, 34  e 35) que Jesus mencionava os deuses da Bíblia, nem para se poder ler no Gênesis (VI, 1 e 4) que os filhos dos Eloim fecundaram as mulheres dos homens. No século XIV, um teólogo ilustre, Maitre Eckhart, professava a ideia de que os homens se transformariam em deuses porque era o que Cristo lhes havia prometido. No século XX, em 1960, Alexandre Safran, grande rabino de Genebra, publicava um livro sobre a Cabala, onde lembra que para a Tradição está escrito que "o homem renovará os atos relatados no princípio do Gênesis", quer dizer, igualar-se-á aos Eloim, a quem aqueles atos são atribuídos pelo texto bíblico.

Extraído do livro de Jean Sendy, "OS DEUSES QUE FIZERAM O CÉU E A TERRA', traduzido por Mario Varela Soares e publicado pela Bertand, em 1969 páginas 83, 84, 85, 86 217, 218.
Fotos que fiz na Basílica de São Luiz Gonzaga, em Novo Hamburgo/RS, arte do mestre da minha mestre Inge, o pintor italiano Aldo Locatelli, e dos artistas Marciano Schmitz, Emilio Sessa e Irmão Nilo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Também li o livro em tempos e achei bem curioso.
Todos os pontos de vista sobre um qualquer assunto nunca são demasiados e fazem-nos aprender.
Mas não nos mostras a tua opinião.
:)