20 fevereiro 2012

É de Wilde

    - Ela disse que dançaria comigo se lhe trouxesse rosas vermelhas - exclamou o jovem Estudante -, mas em todo meu jardim não há uma única rosa vermelha.
     Lá do seu ninho, no carvalho, ouviu-o o Rouxinol e,  espiando-o por entre as folhas, ficou pensativo.
     - Nem uma rosa vermelha em todo meu jardim! - exclamou o jovem, e seus belos olhos se encheram de lágrimas - Ah! Como a felicidade depende de coisas insignificantes! Li tudo o que os sábios escreveram e possuo todos os segredos da filosofia, mas minha vida de tornou insuportável por falta de uma rosa vermelha.
     - Eis aí, finalmente, um amante verdadeiro - disse o Rouxinol. - Noite após noite, cantei-o, apesar de não o conhecer: noite após noite contei sua história às estrelas e agora o vejo. sues cabelos são escuros como a flor do jacinto e seus lábios são vermelhos como a rosa que almeja; mas a paixão tornou seu rosto pálido como o marfim e o selo da tristeza marcou-lhe a fronte.
     - O Príncipe dará um baile amanhã à noite - murmurou o jovem Estudante - e minha amada estará entre os convidados. Se lhe levar uma rosa vermelha ela dançará comigo até a madrugada. Se lhe levar uma rosa vermelha, eu a terei entre meus braços, ela apoiará a cabeça em meu ombro e eu estreitarei sua mão na minha. Mas não há nem uma rosa vermelha em meu jardim e portanto ficarei sentado, solitário, e ela passará por mim sem reparar. Não me dará atenção e meu coração irá se partir.
     - Eis aí realmente um verdadeiro amante - disse o Rouxinol. - sofre o que apenas canto: o que para mim é alegria para ele é dor. Certamente o Amor é uma coisa maravilhosa. É mais precisos do que esmeraldas e mais valorizado do que lindas opalas. Pérolas e granadas não podem comprá-lo, nem se encontra à venda no mercado. Não pode ser adquirido de mercadores, nem ser aferido na balança, como se fosse ouro.
    - Os músicos sentar-se-ão na galeria - disse o jovem estudante - e irão tocar seus instrumentos de corda e meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Dançará com tanta leveza que seus pés não tocarão o piso e os cortesãos em seus trajes festivos irão se aglomerar à sua volta. Mas comigo não dançará, pois não tenho uma rosa vermelha para lhe ofertar.
     - Por que está chorando? - perguntou uma pequena Lagartixa Verde, ao passar correndo por ele com a cauda no ar.
     - Sim, por quê? - disse uma Borboleta que esvoaçava, à procura de um raio de sol.
     - Sim, por quê? - murmurou uma Margarida à sua vizinha em voz baixa e suave.
     - Ele está chorando por causa da rosa vermelha - disse o rouxinol!
     - Por uma rosa vermelha! - exclamaram - Que ridículo! - E a pequena Lagartixa, que era um tanto irônica, riu-se às gargalhadas.
    Mas o rouxinol compreendeu o segredo da tristeza do Estudante e permaneceu silencioso no carvalho, meditando sobre os segredos do Amor.
     Subitamente abriu as asas escuras para voar e lançou-se no espaço. Passou pelo bosque como uma sombra e como uma sombra atravessou o jardim.
    No centro do gramado erguia-se uma linda Roseira e, quando a viu, voou para ela e passou sobre um de seus ramos.
    - Dê-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
    Mas a Roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são brancas - respondeu - tão brancas como a espuma do mar e mais brancas do que a neve na montanha. Mas vá até minha irmã que floresce ao redor do velho relógio solar e ela dar-te-á o que desejas, talvez.
     Então, o rouxinol voou até a Roseira que crescia em torno do velhos relógio solar.
     - Dê-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
Mas a roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são amarelas - respondeu; tão amarelas como os cabelos da sereia que repousa no trono âmbar e mais amarelas do que o narciso que floresce no prado antes que o camponês chegue com a foice. Mas vá até minha irmã que floresce sob a janela do estudante e talvez ela te dê o que desejas.
Então o rouxinol voou para a Roseira que florescia sob a janela do Estudante.
     - Dá-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
     Mas a Roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são vermelhas - respondeu-, tão vermelhas como os pés da pomba e mais vermelhas do que os imensos leques de coral que ondulam sem cessar nas cavernas do Oceano. Mas o inverno gelou minhas veias, a geada destruiu meus botões, a tempestade quebrou meus ramos e não darei uma só rosa o ano inteiro.
     - Uma rosa vermelha é tudo o que desejo - exclamou o Rouxinol -, apenas uma rosa vermelha! Não haverá um meio de consegui-la?
    - Há um meio - respondeu a Roseira -, mas é tão terrível que não me atrevo a dizê-lo.
     - Dize-me -disse o rouxinol - não tenho medo.
     - Se queres uma rosa vermelha - disse a Roseira - deves criá-la com a tua música à luz do luar e tingi-la co o sangue do teu próprio coração. Deves cantar para mim com o peito apoiado num espinho.
Deves cantar a noite inteira para mim e o espinho deverá atravessar teu coração e o sangue de tua vida deverá correr em minhas veias e tornar-se meu.
     - A morte é um preço muito alto para pagar por uma rosa vermelha - exclamou o Rouxinol - e a Vida é muito preciosa para todos. É tão agradável pousar na mata verde e contemplar o Sol em sua carruagem dourada e a Lua em sua carruagem de pérola. Doce é o perfume do espinheiro e doces são as campânulas que se abrigam no vale, e a urze que tremula na colina. Mas o Amor é melhor do que a Vida, e o que é o coração de um pássaro comparado com o coração de um homem?
     Então abriu as asas escuras e lançou-se no espaço. voou pelo jardim como uma sombra e como uma sombra atravessou o bosque.
     O jovem Estudante ainda jazia sobre a relva, onde o havia deixado, e a s lágrimas não haviam ainda secado em seus belos olhos.
    - Sê feliz - exclamou o rouxinol -, sê feliz; terás tua rosa vermelha. Eu a criarei com meu canto à luz do luar e a tingirei com o sangue de meu próprio coração. tudo o que te peço em troca é que sejas um amante verdadeiro, pois o Amor é mais sábio que a Filosofia, por mais sábia que esta seja e é mais forte que o Poder, por mais poderoso que este seja. Suas asas teem cor de chama e seu corpo cor de fogo. sues lábios são doces como o mel e seu hálito é como incenso.
     O Estudante ergueu a vista da relva e escutou, mas não podia compreender o que o Rouxinol estava lhe dizendo, pois apenas conhecia as coisas escritas nos livros.
     O Carvalho, porém, compreendeu e ficou triste, pois gostava muito do pequeno Rouxinol que havia construído o ninho em seus ramos.
     - Canta-me uma ultima canção - murmurou - ficarei muito solitário quando tiveres partido.
então o Rouxinol cantou para o Carvalho e sua voz lembrava a água borbulhando de uma jarra de prata.
     Quando  terminou sua canção o Estudante levantou-se e tirou do bolso um caderno de anotações e um lápis.
     - Tem estilo - disse a si mesmo, enquanto se afastava através do bosque -, não podemos negá-lo; mas terá sentimento? Receio que não. De fato, é como muitos artistas; somente estilo, sem nenhuma sinceridade. Não se sacrificaria pelos outros. Pensa apenas na música e todos sabem que artes são egoístas. Contudo, devemos reconhecer que possui belas notas em sua voz. Que pena elas nada significarem ou terem alguma utilidade.
     E entrou em seu quarto, deitou-se em pequeno catre e começou a pensar em sua amada; e, pouco tempo depois, adormeceu.
    Quando a lua brilhou nos céus o Rouxinol voou atá a Roseira e colocou seu peito contra o espinho. Cantou a  noite inteira com o peito contra o espinho e a fria Lua de cristal inclinou-se e pôs-se a escutar. Cantou a noite inteira e o espinho se aprofundava cada vez mais em seu peito enquanto se esvaia o sangue de sua vida.
     Primeiro cantou o nascimento do amor no coração de um rapaz e de uma moça. E no ramo mais alto da roseira desabrochou uma rosa maravilhosa, pétala após pétala, à medida que uma canção seguia a outra. a princípio ela era pálida como o nevoeiro que repousa sobre o rio - pálida como os pés da manhã e prateada como as asa da aurora. Semelhante à imagem de uma rosa num espelho de prata, semelhante ao reflexo de uma rosa numa lagoa, era a rosa que florescia no ramo mais alto da Roseira.
    Mas a Roseira bradou ao Rouxinol que se comprimisse mais contra o espinho.  - Comprima-te mais, pequeno rouxinol - bradou a Roseira - ou o Dia virá antes que a rosa esteja terminada. 
    Então o Rouxinol comprimiu-se mais contra o espinho e seu canto se tornou cada vez mais sonoro, pois cantava o nascimento da paixão na alma de um homem e de uma donzela.
     E um delicado matiz róseo apareceu nas pétalas da rosa, como o rubor na face do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho ainda não havia atingido o coração do Rouxinol e, portanto, o coração da rosa permanecia branco, pois somente o sangue do coração de um Rouxinol poderia enrubescer o coração de uma rosa.
    E a roseira bradou ao Rouxinol para que se comprimisse mais contra o espinho. - Aperta-te mais pequeno rouxinol - bradou a Roseira - ou o dia virá antes que a rosa esteja terminada.
    E o Rouxinol se estreitou mais contra o espinho e o espinho atngiu seu coração e uma dor cruciante atravessou-lhe ao peito.
Quanto mais acerba era a dor, mais arrebatado se tornava seu canto, pois cantava o Amor sublimado pela Morte, o Amor que não acaba no túmulo.
E a rosa maravilhosa começou a tornar-se rubra, como a cor do céu nascente. Rubra era a coroa de pétalas e rubro como um rubi o coração.
    Mas a voz do Rouxinol foi-se tornando mais fraca, suas pequenas asas começaram a palpitar e um véu cobriu-lhe os olhos. Sua canção tornou-se cada vez mais débil e sentiu que algo lhe cerrava a garganta.
Então lançou uma derradeira onda de música. A lua branca a ouviu e, esquecendo a madrugada, permaneceu no céu. A rosa vermelha a ouviu e, extasiada, estremeceu inteira, abrindo suas pétalas ao ar frio da manhã. O eco levou a canção à sua caverna cor de púrpura nas colinas, despertando dos sonhos os pastores adormecidos. Flutuou pelos juncos do rio e estes levaram sua mensagem ao mar.
    Mas o Rouxinol não respondeu, pois jazia morto entre as altas hastes da relva, com o espinho cravado no coração.
    Ao meio-dia o estudante abriu a janela e olhou para fora.
    - Que sorte maravilhosa tive! - exclamou- Eis aqui uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda minha vida.  É tão bela que certamente deve ter um nome comprido em latim.
    E inclinando-se colheu-a.
    Então pôs o chapéu e correu para a casa do Professor, com a rosa na mão.
    A filha do Professor estava sentada à porta, enrolando seda azul numa dobadoura, com o cãozinho deitado a seus pés.
    - Disseste que dançarias comigo, se te trouxesse uma rosa vermelha - exclamou o estudante -. eis aqui a rosa mais vermelha do mundo. Irás usá-la hoje à noite perto do coração e, enquanto dançamos, ela te dirá quanto te amo.
    Mas a moça franziu as sobrancelhas.
    - Receio que a rosa não vá combinar com meu vestido - respondeu - e, além disso, o sobrinho do Camarista enviou-me jóias verdadeiras e todos sabem que jóias custam mais do que flores.
    - Palavra de honra, és muito ingrata - disse o estudante, com raiva. E atirou a rosa na rua, onde caiu na valeta e foi esmagada por uma roda de carro. 
    - Ingrata! -disse a moça -. És muito grosseiro, ouvistes? E, afinal de contas, quem és? Apenas um Estudante. Creio que não tenhas nem mesmo fivela de prata nos sapatos, como o sobrinho do Camarista.
    E levantou-se da cadeira e entrou em casa.
    - Que coisa estúpida é o Amor - disse o Estudante, ao se afastar. - Não é nem metade tão útil quanto a Lógica, pois não prova nada e está sempre falando de coisas que não irão acontecer, fazendo-nos acreditar em coisas que não são verdadeiras. Na verdade, não é nada prático, e como nesta época ser prático é tudo, voltarei à Filosofia e estudarei Metafisica.
    E retornando a seu quarto, tirou da estante um grande livro empoeirado e começou a ler.


Oscar Wilde - O Rouxinol e a Rosa, tradução de Sigrid Renaux para 
O Mundo e Suas Criaturas, Uma antologia do Conto Irlandês 
organizado por Munira Mutran, publicado pela Associação Editorial HUMANITAS
Foto: Cristo Velado, escultura de Raimondo Di Sangro, para a Capela de Sansevero - Nápoles

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