27 fevereiro 2012

O Garoto Persa, por Mary Renault

"Todos os atos públicos de Alexandre que relatei se baseiam nas fontes, sendo que os mais dramáticos são os mais autênticos. Foi impossível achar espaço para todos os acontecimentos importantes, mesmo, de sua vida dispersa, ou para demonstrar toda amplitude de seu gênio. Este livro tenta apenas apresentá-lo sob um ângulo, com certos pontos de destaque.
As fontes históricas também elogiam "a moderação" de sua vida sexual. Nenhuma sugere que ele era celibatário; se o fosse, admitir-se-ia sem dúvida que era impotente; o ideal cristão da castidade ainda não aparecera. Uma opinião geral se fundamenta num impulso físico bem baixo - sem qualquer surpresa, já que tão imensas energias eram despendidas em outras atividades - associado a uma capacidade arrebatada de afeição. 
Sabemos tão pouco a respeito de seus casos de amor, em parte porque foram poucos, em parte porque ele sabia escolher; nenhuma de suas mulheres jamais o envolveu em escândalo.
Que Heféstion era seu amante parece segundo as evidencias, provável a ponto da certeza, mas não é realmente declarado em nenhuma parte. A história de Plutarco de um filho com a viúva de Memnon depois da queda de Damasco é, por razões sólidas, posta em dúvida pelos historiadores modernos, não existindo qualquer outra referência a que ele tivesse uma amante. Bagoas é a única pessoa explicitamente mencionada nas fontes como eromenos de Alexandre.
Ele aparece inicialmente em Cúrcio: "Nabarzanes, tendo recebido um salvo-conduto, encontrou-se com ele (Alexandre) trazendo grandes presentes. Entre eles estava Bagoas, um eunuco de notável beleza e em plena flor da juventude, que fora amado por Dario, e seria depois amado por Alexandre; e especialmente devido à solicitação do rapaz que ele foi levado a perdoar Nabarzanes."  Este último trecho é típico da fantasia literária de Cúrcio; o salvo-conduto mostra que Alexandre estava disposto a ouvir o relato de Nabarzanes contado por ele mesmo, não havendo dúvidas que isso decidiu a questão. Como Bagoas lhe chegou às mãos, quando ninguém da comitiva de Dario teve permissão para ficar com ele depois de sua prisão, e o próprio Nabarzanes escapou com apenas seiscentos soldados de cavalaria, não é explicado.
Existe a crença errônea moderna comum de que todos os eunucos se tornam flácidos e corpulentos. Para corrigi-la não é preciso remontar mais longe do que ao século XVIII e seus famosos castrati da ópera, cuja aparência romântica os levava a ser muito perseguidos pelas mulheres da moda. Um retrato do maior deles, Farinelli, feito no começo de sua meia-idade, mostra um lindo rosto impressionante e uma figura que muitos tenores modernos invejariam. O diarista dr. Burney, escrevendo sobre ele ainda mais tarde disse: "Ele é alto e magro, mas tem um ótimo aspecto para sua idade, é ativo e bem educado."
A história dos últimos dias de Dario encontra-se apenas em Cúrcio. É vivida e detalhada; é isenta de tendência pela qual Cúrcio é notório e provavelmente autêntica. 
Assim sendo, as cenas finais só podem ter sido fornecidas a algum cronista anterior por um dos eunucos de Dario, que foi a última testemunha; é razoável admitir que pelo próprio Bagoas. Com seu lugar privilegiado na corte, ele deve ter sido conhecido de todos os historiadores contemporâneos de Alexandre. 
A história a seguir faz referência a Bagoas seis anos depois, quando o caso do beijo no teatro é contado tanto por Plutarco quanto por Ateneu.  A localização em Carmânia é extremamente importante; ali Alexandre só tinha consigo os que o acompanharam através da Índia e da marcha no deserto. Depois de todas essas vicissitudes, Bagoas ainda não somente gozava da grande afeição de Alexandre, mas evidentemente era bem estimado até pelas xenófobas tropas macedônias, por si mesmo surpreendentes. Alexandre sempre pagava com lealdade eterna uma devoção pessoal e isso parece mais a provável explicação para esta ligação tão longa.
A origem do jovem eunuco é ignorada; mas a conjectura de que era de nascimento nobre não é pura fantasia.
Os meninos, cuja aparência era bem cuidada e não estragada pela desnutrição ou provação, uma vez escravizados, corriam sempre o risco da prostituição. O discípulo de de Sócrates, Fédon, é o caso mais conhecido.
O último aparecimento de Bagoas foi irreparavelmente deturpado por Cúrcio; nem com a máxima boa vontade é possível aceitá-lo. Felizmente para a reputação de Bagoas, temos o testemunho abalizado de Aristóbulo, o arquiteto que de fato restaurou o túmulo de Ciro para Alexandre, de que ele foi lá quando esteve a aprimeira vez em Persépolis, viu ele mesmo os bens tumulares valiosos e fez Aristóbulo inventariá-los, cuja descrição é preservada por Arriano, juntamente com seu relato da profanação. Em Cúrcio, Alexandre só vai ao túmulo em seu regresso da Índia e acha-o desguarnecido porque Ciro fora enterrado somente com suas armas simples; uma concepção que certamente agradaria o sentimento romano, mas surpreenderia um arqueólogo. 
Bagoas, que tinha um despeito por Orxines por não ter lhe enviado um suborno, inventa um tesouro inexistente e o acusa de roubo. Nenhum dos crimes pelos quais Orxines foi de fato punido é mencionado; ele é considerado uma vítima inocente. Quando se tira o impossível dessa história, resta pouca coisa. Admiti que Bagoas entrou de certo modo em cena, tendo algum ressentimento contra o sátrapa com o qual Alexandre simpatizou. Em vista da relação de crimes de Orxines, supus o rancor mais comum do mundo antigo, uma rixa familiar.
O sensacionalismo estonteante de Cúrcio, um homem insuportavelmente bobo com acesso a fontes preciosas agora perdidas para nós, que ele desperdiçou na causa de um conceito literário tedioso sobre a deusa Fortuna e muitos exercícios floridos de retórica romana. (Alexandre exortando os amigos amavelmente a extraírem a flecha enfiada em seu pulmão, é impressionantemente eloquente.) Como as graças da Fortuna conduzem ao hybris e nemesis, a história de Alexandre é torcida nesse sentido, recorrendo-se aos materiais subversivos atenienses anti-macedônicos, escritos por homens que nunca o viram e tendo tanta relação com a verdade objetiva como se poderia encontrar numa história do povo judeu encomendada por Adolfo Hitler. Isso foi revivido no tempo de Augusto, por Trogo e Diodoro, que encontram num rei morto há três séculos um seguro bode expiatório para as pretensões do governante vivo. Nenhuma tentativa é feita em coerência com os fatos incontestáveis. Um tirano corrupto teria sido trucidado pelos rebeldes de Ópis no momento em que se metesse com eles; poderiam ter feito isso com perfeita impunidade (o destino de mais um imperador romano) e eleito um novo Rei, como era direito deles. que eles, em vez disso, reclamaram de Alexandre por não terem permissão para beijá-lo, não é ficção, mas história.
No que concerne ao mundo antigo, os motivos políticos dessas tentativas inconvincentes de mostrar Alexandre corrompido pelo sucesso são bastante claros. Mais mistificante é a deflagração hodierna do que se pode chamar de desmoralização, já que ultrapassa a interpretação unilateral dos fatos, dada a sua completa deturpação. 
Uma vulgarização recente diz apenas a respeito da execução de Filotas que foi baseada "numa acusação forjada", embora sua não revelação da conspiração de assassinato seja admitida por todas as fontes (qual seria a situação de um guarda de segurança moderno que, informado que havia uma bomba no avião da Rainha, resolvesse não comunicar?) Heféstion é "fundamentalmente estúpido", embora em nenhuma de suas missões independentes de grande responsabilidade, diplomáticas como também militares, ele tenha fracassado. Alexandre é claramente acusado de tramar a morte do pai, embora não somente as provas, literalmente, sejam nulas; Filipe não tinha sequer outro herdeiro viável para proporcionar o motivo. "alcoolismo extremo" é alegado como tendo precipitado o fim de Alexandre; qualquer clínico geral poderá explicar qual é a capacidade de trabalho de um alcoólatra, e qual a sua possibilidade de sobreviver a uma perfuração de pulmão, cirurgia de campo sem anestesia e uma marcha no deserto. Depois do gesto da tropa no leito de morte de Alexandre, um acontecimento único na história, é um tanto espantoso dizer que pouca gente pranteou sua morte. Que haja manifestações de admiração e desmerecimento é inevitável; elas não devem porém ser emitidas a expensa da verdade.
Com o mesmo espírito, os motivos mais sinistros teem sido procurados para sua política de fusão racial. Contudo, ninguém se preocupou menos em esconder suas aversões como ele; é berrantemente óbvio que, uma vez entre os persas, ele simplesmente verificou que gostava deles. 
Certamente em nosso tempo só mesmo uma mente muito tacanha achará isso desabonador ou estranho.
Embora as legações do desarranjo mental completo de Alexandre não sejam muito sólidas, parece haver pouca dúvida de que ele sofreu uma séria perturbação mental logo depois da morte de Heféstion. Se tal prostração teve recaídas, não se pode saber. A natureza de Alexandre é uma espécie de mola automática. 
As tensões de sua meninice exigiam compensação na realização; a realização acumulava responsabilidades, ao mesmo tempo sugerindo novas realizações; a espiral ascendia inexoravelmente e não se pode ter certeza que esse processo continuaria durante um período de vida normal sem consequências desastrosas. Talvez as palavras de despedida de Calano fossem mais uma promessa do que um aviso.
Bury e outros historiadores frisaram a ligação entre o fornecimento de água contaminada e a ingestão mais frequente de vinho no exército. Aristóbulo, que esteve na corte durante o reinado de Alexandre, diz que seu habito comum era ficar sentado conversando e tomando vinho noite adentro, mas sem embriagar-se. Segundo Plutarco, ele ficava um tanto eufórico no fim da reunião; um fenômeno que pode ser observado hoje nas pessoas não dadas a excesso. As bebedeiras ocasionais eram, porém, caracteristicamente macedônicas, como já encontramos antes da acensão de Alexandre. 
Os boatos de que ele foi envenenado, predominantes durante séculos após sua morte, não condizem com o relato clínico detalhado de sua última doença. Sua perda de voz sugere a complicação fatal mais comum até a descoberta dos antibióticos - pneumonia. A pleurisia teria sido uma consequência certa em vista de seu ferimento pela flecha dos malos. 
Aristóbulo diz que quando Alexandre tinha febre alta bebia vinho e ficava delirando; não se diz que o tinha pedido. Se lhe foi maliciosamente transmitido que Alexandre havia sido, falando sob o ponto de vista moral, envenenado, a presença de um inimigo mortal como Cassandro não poderia passar despercebida.
Cúrcio manteve a história de que o corpo de Alexandre foi encontrado indecomposto, apesar do calor do verão e da longa demora em chamar-se os embalsamadores, devido ao caos que seguiu à sua morte. O período dado, seis dias, é sem dúvidas absurdo; mas é bem possível que uma coma profunda tenha enganado os observadores muitas horas antes de ocorrer sua morte clínica. Os embalsamadores fizeram seu trabalho com proficiência. Augusto Cézar, visitando seu túmulo em Alexandria, admirou a beleza de suas feições trezentos anos depois.
O relato do fim de Heféstion sugere que ele teve tifo, em que, embora o apetite às vezes retorne antes das lesões do intestino sarararem, o alimento sólido causa perfuração e colapso rápido. Em nosso próprio século, pacientes de tifo teem morrido no hospital devido ao gesto imprudente de parentes irresponsáveis que lhes levam clandestinamente alimento. A galinha cozida de Heféstion, do tamanho de uma garnizé moderna, seria mais do que suficiente.
Segui Arriano no que diz respeito à conspiração dos escudeiros, exceto no que concerne à minha própria dedução de que as cartas de Aristóteles foram encontradas entre os papéis de Calístenes. A correspondência amigável entre Alexandre e seu tutor cessou a partir dessa época.
A figura romântica de Roxane não tem sido tratada com um ceticismo infundado. Não há necessidade de deixar de considerar o casamento como político; sua posição era média, e sua beleza famosa. Mas, uns dois meses depois, os escudeiros podiam contar que iriam encontrar Alexandre na cama sem ela; e sabemos o que ela fez quando Alexandre morreu. Não pode perder tempo em prantear o morto. Enviou, com tal rapidez que se adiantou à notícia, uma carta à esposa real de Alexandre, Estatira, escrita no nome dele, chamando-a imediatamente á Babilônia; e mandou matá-la assim que chegou.
Sisigâmbis, a Rainha-Mãe da Pérsia, quando soube da morte de Alexandre, despediu-se da família, trancou-se sem alimento e morreu cinco dias depois.
A Mitra Real da Pérsia, cujo uso por Alexandre causou tanta controvérsia, não tinha semelhança  com a mitra moderna da Igreja, mas assentava na cabeça como um capacete, com abas grandes nos lados e atrás. Tinha uma coroa em forma de pico, que os sátrapas usavam achatada; usá-la vertical era sinal de realeza. Era cingida por um diadema de fita rosa.
Acontecimentos de que não me ocupo neste livro, ou que Bagoas não podia saber, teem sido levados em conta nas biografias de Alexandre. É preciso ter em mente hoje que somente mais de um século depois foi que um punhado de filósofos começou mesmo a discutir a moralidade da guerra. 
Em seu tempo a questão não era se, mas como se fazia a guerra. 
É digno de nota que os historiadores mais favoráveis a ele, Ptolomeu e Aristóbulo, foram os que o conheceram em vida. Escreveram quando ele já havia morrido, sem outro incentivo senão o de fazer justiça. 
Mesmo levando em conta seus defeitos (aqueles que seus próprios tempos não consideravam como virtudes), resta-nos o fato de que nenhum outro ser humano atraiu no curso de sua existência, de tantos homens, uma devoção tão fervorosa. Suas razões merecem ser examinadas.
Fontes para o leitor:
A melhor é Arriano, que se baseou principalmente nas memórias perdidas de Ptolomeu e Aristólubo e escreveu com grande senso de responsabilidade. Plutarco também apresenta um trabalho vívido, mas se esforça pouco para avaliar a sua evidência e não merece muito crédito."


Nota da Autora que encerra o livro O Garoto Persa, escrito por Mary Renault, com tradução de Carlos Nayfeld publicado pela Editora Artenova S A em 1974.


A gravura que escolhi para ilustrar este texto  representa a rendição do rajá indiano, Poro (mais de 2 metros de altura), a Alexandre, após a batalha em que Poro lutou bravamente mas foi ferido no ombro e derrotado. 
Depois da rendição Alexandre confirmou-o no posto de sátrapa e acrescentou mais território para ele administrar, contrariando assim o inimigo de Poro, Taxiles, que havia peticionado a Alexandre a destruição Poro. 
A Taxiles só restou fazer as pazes com Poro. 

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