24 julho 2013

Livro de Marilda Almeida da Silva - Medicina em Ijuí - Fragmentos de uma história e seus personagens,

Carolina  expondo a capa do livro da mãe, a crítica de arte e historiadora, Marilda Almeida da Silva
O livro da historiadora Marilda Almeida da Silva foi lançado em 2012 em Ijuí. A publicação é fruto de quatro anos de trabalho em que a autora empenhou-se em uma ampla pesquisa. 
Suas fontes foram especialmente os documentos preservados do Museu Antropológico Diretor Pestana, e entrevistas com familiares dos médicos citados. 
A publicação foi patrocinada por três instituições - Sociedade de Estudos, Pesquisa e Assistência Médica (SEPAM), Associação Médica do Noroeste(AMEN) e Hospital de Caridade de Ijuí.
"O conteúdo da publicação, dividida em cinco capítulos, contempla desde os primórdios da medicina ocidental, passando pela história dessa no Brasil e no Rio Grande do Sul, até a consolidação do seu exercício em Ijuí, ou seja, desde a fundação da colônia, em 1890, até a década de 1960. O professor da UFRGS, José Augusto Avancini, na orelha do livro, considera o livro de Marilda como um dos pioneiros na pesquisa sobre a história da medicina no Brasil, e especialmente no Rio Grande do Sul.
Marilda nasceu em São Paulo e foi criada em Ouro Fino, interior de Minas Gerais. Passou a residir em Ijuí e, 1970, rapidamente interessando-se pela cultura e particularidades da região. É graduada em História e em Artes Visuais pela UNIJUÍ, com mestrado em Artes Visuais pela UFRGS. Também é autora, junto com Celso Ackert, dos Cadernos do Centenário, sobre a história de Ijuí, publicada pelo Jornal da Manhã, em 1990. Na entrevista que segue, Marilda explica a proposta do livro e relata curiosidades sobre o exercício da medicina no passado.

Como surgiu a ideia do livro?
Eu já tinha experiência anterior com pesquisa e publicação histórica. Sou graduada em História e em Artes Visuais, e fiz mestrado em teoria Histórica e Crítica de arte. Essa formação me dá conhecimento mais estruturado para enxergar as coisas. E o Dr. Pydd, que gosta muito da preservação de memórias, acabou me instigando a escrever.
ele sabe do acervo do Museu e me questionou sobre a existência de fotos, documentos de médicos, e sugeriu que eu escrevesse sobre isso. Eu esquematizei um projeto, que foi discutido pelos médicos, e as entidades (Sepan, Amen e HCI) que acabaram financiando a pesquisa.

Quais foram os maiores desafios a superar para a elaboração do livro?
Primeiro, eu não tinha nenhuma afinidade com medicina. Comecei lendo um punhado de coisas para me situar um pouco. No início pesquisei bibliografia, no Museu de História da Medicina em Porto Alegre. Tem lá um pessoal bastante capacitado, gente jovem, estudando ou fazendo mestrado, e eles me forneceram os primeiros dados. Depois fui ao Centro Cultural da Santa Casa, a diretora é uma pessoa supercompetente, historiadora. Como eu tenho conhecimento das pessoas relacionadas à pesquisa e à história, a gente vai abrindo caminho. Outra dificuldade da pesquisa é que tem dias em que você está afiada, consegue perceber coisas, assim como tem dias que tranca, não se consegue fazer um parágrafo. Até o final da minha pesquisa ainda surgiam coisas. O livro já estava no escritório que fez o projeto gráfico, e eu descobri uma fotografia no Museu que eu não conhecia, do lançamento da pedra fundamental do Hospital de Caridade. Mandei para eles, eles ajustaram e conseguiram incluir. então, o caminho de tecer uma história é constantemente iluminado por novas descobertas e sensações. Como diz o profesor Avancini na orelha do livro, "a obra oferece uma interessante leitura entre uma quase ficção -afinal, a história também é uma forma de ficção". Ou seja, você tem os documentos que lhe dão certeza de alguma coisa, mas ligar, fazer a conexão entre os documentos, é complicado. Como eu já conheço bastante coisa da história de Ijuí, a gente faz suposições, vai construindo uma certa ficção, mas baseado em documentos, em fatos, em relatos de pessoas, em jornais.

Além da pesquisa bibliográfica e em Museus, houve o contato com alguma fonte viva? 
Sim. Uma foi a Ilce Kuhlmann, filha do Dr. Kuhlmann. Ela está com 95 anos, lúcida, culta, mulher ativa, foi empresária e eu estive muitas vezes com ela. Eu também consegui, mas já faleceu nesse meio tempo, falar com o filho do Dr. Hans Soldan. ele veio para ijuí no mesmo ano que o Dr. Kulmann. ele foi o primeiro médico do Hospital Alemão. todo mundo pensa que o hospital era do Dr. Kuhlmann, mas o Dr. Hans é que foi o primeiro médico. o Dr. Soldan teve dois filhos que nasceram aqui, e um deles era médico também. Foi professor da Dra. Miréia, e eu consegui falar com ele também. estava lúcido, foi maravilhoso, mas nesse meio tempo ele faleceu.

A pesquisa está delimitada no período de 1890 a 1965. qual a razão?
A delimitação temporal é um problema. Depois de um bom tempo de pesquisa, vi que não podia englobar tudo, senão ia levar uma década. então acabei decidindo estipular o começo em 1890, a partir da fundação da colônia de Ijuí, e no fina de 1965.
E marco uma data, que é quando o Dr. Gilberto Gomes começa a clinicar.
Ele foi o primeiro médico no Rio Grande do Sul a ter residência em pediatria, dentro da modalidade atual, que é de fazer essas especialidades. antes, os médicos faziam uma medicina geral, eram clínicos gerais, a aos poucos iam estudando. Achei que esse seria um marco. Inclusive tem pessoas que vieram depois dele e já faleceram, tem outras pessoas que estão vivas, mas que infelizmente, não entram nessa apresentação. Essa delimitação é necessária. conceitualmente tem a ver. Por isso, o título da obra foi um problema. Uso fragmentos no título, porque eu entendo que não posso contar toda história, ninguém pode. Então, eu conto partes, não vou ter a pretensão de contar tudo.

Que aspectos da medicina praticada nos primórdios do município, a senhora destaca?
Primeira coisa que a gente lembra é que, com a fundação de Ijuí, as pessoas chegavam de outros países e se deparavam com um mato, sem saber falar a língua. Não conheciam as ervas, estavam descontextualizadas de tudo: do meio ambiente, da língua, do clima, e por isso morriam de disenteria, de loucura, ou seja, de depressão, de acidentes, como picada de cobra, árvore caída. Isso em termos de saúde, tanto física quanto mental, foi um desafio enorme. Nesse cenário, apareciam pessoas com suas caixinhas de ervas, de chazinho seco, de alguma coisa. E sempre tinha uma benzedeira. Um processo completamente rudimentar. 
Hoje quando se fala em terra das etnias diversificadas, muitas pessoas nem imaginam o quanto de sofrimento teve, não sabem o que tem por trás disso.

Você citou os curandeiros e as parteiras, e seu livro também cita os farmacêuticos. qual era a importância da figura do farmacêutico na época?
Eles eram respeitados como hoje são os médicos. Em 1910, apareceu o primeiro farmacêutico, no livro eu cito o nome, achei uma prescrição médica dele. Era o farmacêutico que atendia quem estava doente. Médico era coisa rara, não só aqui em Ijuí, mas em todo estado. Consulta com um médico era um luxo. Por isso que os farmacêuticos eram respeitados como são hoje os médicos. Eles manipulavam, prescreviam. alguns eram formados, outros não.

A partir de que momento a figura do médico passa a ser mais presente?
A partir de 1911 eu encontrei nomes de médicos que já estavam aqui. O jornal comentava coisas pequenas, contava os atos magnânimos que eles faziam. um fato que marcou foi a cesariana, que era uma novidade aqui. Eles abriam a mulher pelas costas. Tudo era rudimentar. Mas a gente tem que pensar que tudo acontecia na medida do seu tempo, na medida dos recursos que o ambiente oferecia, e na própria medida do desenvolvimento da medicina. Não pode um médico de hoje achar engraçado, porque na história é tudo dentro do seu tempo.

Qual foi o período mais significativo da trajetória da medicina no período pesquisado?
Em 1914, foi construído o Hospital Alemão, pela Sociedade Evangélica, que já era um alento para as pessoas. A estrutura dele ainda está aqui, onde hoje está instalada a Secretaria da Mulher. Mas naquela época, ir ao hospital significava que a pessoa estava mal mesmo. De maneira geral, se cuidava da saúde em casa, ou com uma comadre, com benzedeira, com chá, uma simpatia, um cataplasma. Uma coisa que usavam muito era a sangria. isso e´coisa que se faz desde os gregos, sangria e sanguessuga, um bichinho que suga o sangue. 
Eles achavam que tirando o sangue eliminavam as toxinas do corpo. Até no começo do século XX, as pessoas tinham essa maneira de enxergar a medicina, e só iam no hospital se estavam mal mesmo, porque o hospital era lugar para morrer. Outro fato significativo foi em 1926, quando o Dr. Kuhlmann comprou um aparelho de Raio X, uma novidade aqui e em todo o Brasil. Enxergar o esqueleto, a parte interna, era uma maravilha. E conforme relatos que ouvi, na época não se fazia Raio X para ver quebraduras e outras coisas como é hoje, mas para saber onde a bala tinha se alojado. 
Aqui era lei do faroeste, todo mundo andava com seu revólver e disputavam a coisa a bala.

Sobre os personagens citados, o que definiu a presença deles no livro?
Na publicação eu cito todos os nomes que eu encontrei. Há um hiato em 1914, 1915 e 1916, quando o jornal Die Serra Post, interrompeu sua circulação. Quando o jornal retornou, se pesquisa pelas propagandas, pelas notícias. Tudo o que consegui, eu registrei, alguns com bastante informação e outros apenas com nome, quando chegou aqui, de onde era, mas que foi embora, ficou pouco tempo.

Qual a abrangência das informações sobre os personagens?
Dentro do possível eu tento tratar a biografia, mas para não ficar enfadonho, eu contextualizo a época, o que acontecia, o envolvimento da pessoa, se teve envolvimento político, ou o que estava acontecendo no Estado ou no País. eu contextualizo com histórias. é um viés diferenciado de contar a história de Ijuí, por meio das ações de saúde, dos médicos.

Sabe-se que muitos médicos pioneiros tiveram uma atuação além da medicina. que exemplos a senhora poderia citar?
Um exemplo é o Dr. Ulrich Kulmann, que veio em 1913. Tem uma fotografia dele vindo num navio. era uma pessoa com formação, o pai era pastor, pessoas esclarecidíssimas, cultas e com uma boa formação de posicionamento social, de ajudar. A esposa dele era muito culta também. Ele chegou aqui e trouxe segurança para as pessoas, interferiu na Igreja Católica, na escola alemã. ele foi quem deu início às campanhas de vacinação, de esclarecimento. O Kuhlmann chegou a ser intendente do município. Por um desvio político ele foi substituto em uma gestão, mas ele era uma pessoa com grande participação na comunidade como um todo.

Como era a relação do médico com a comunidade do passado?
Era quela relação de médico à beira do leito, como se diz. O médico era aquele que atendia, que passava a noite junto. Hoje a relação é muito mais distante, mais fria, mais impessoal. O médico, de maneira geral, entra muito na intimidade da pessoa, mas antigamente eles entravam totalmente na intimidade do lar. É algo que dá aconchego para o doente e para a família, e isso a gente perdeu. Mas ganhamos em outras coisas, lógico."

Entrevista concedida por Marilda para a Revista Stampa(na íntegra)
Edição de junho de 2012.
contato: stampa@jornaldamanhaijui.com


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