13 junho 2016

Uma Drag Queen de Paris


Eu estava sentada sob a tampa do vaso sanitário com as pernas encolhidas em função de dividir o pequeno espaço com o carrinho do aeroporto com as minhas malas e case com telas grandes. 
Estava ali perdida no tempo, absorta olhando as fotos que tirara desde a manhã daquele dia no visor da câmera. 
Era início da noite e eu aguardava o meu vôo de retorno para o  Brasil quando ouvi a voz de Michael Jeter no filme O Pescador de Ilusões, entoando  uma melodia como quem cantasse para si, mas desfrutando da acústica do enorme banheiro feminino do Charles de Gaulle.
Era a minha deixa para desoucupar o espaço? 
Espremi-me entre o carrinho e a parede e procurei visualmente a cantora. Estava sentada sobre a bancada da pia, distante, lá no início do salão do banheiro. Estranhei, mas em Paris!? pode ser que possa. Até mesmo no Charles de Gaulle, onde a gente se sente só no universo...especialmente lá. Se alguém driblou as regras e enfeita a noite de garoa na primavera, justamente eu apoiaria.
Voltei-me a minha atividade de apreciar a torre nas fotos, o caminho que fizera registrando, de Troyes a Paris, sentindo-me menos só. 
Ao aproximar-me das pias percebi que a moça de voz rouca era um homem vestido de mulher que cultivava um belo de um bigode sob os lábios pintados. Ela era muito alta e tinha pernas e braços de louva-deus, a moça de bigode depilava as pernas no deserto banheiro feminino do aeroporto Charles de Gaulle. 
Cantarolava triste como quem tivesse apanhado na rua um dia antes, ou soubesse que apanharia na rua naquela noite. Depilava as pernas como se o barbeador descartável fosse um pincel com o qual pintasse delicadamente um par de mastros finos e sebosos. 
Eu embarcaria em instantes e o que seria da vida da "cantora de Lydia"? Ela ficaria em Paris, onde os travestis são respeitados e podem tomar banho de pano úmido sentadas com os pés dentro da pia do aeroporto e são deixadas em sua paz do momento.
Enquanto fazia uma amizade sem palavras com aquela pessoa tão melancólica e especial, sem que trocássemos uma palavra sequer, ou nos encarássemos, eu escovava os dentes e me demorava tentando entender como podia ter acessado uma realidade alternativa através da porta daquele banheiro, onde somente Michael Jeter e eu entramos por mais de meia hora. 
Eu pensava em sua mãe, em como lhe doera a ruptura, eu pensava no frio da noite de Paris, se haveria dinheiro para o jantar. Ao encerrar minha necessaire, já para me retirar, olhei em sua direção, ela me olhou nos olhos com a mão estendida.
Me senti tão honrada, mas tão honrada que meu coração exultava. Catei algum dinheiro na bolsinha e lhe dei, bem pouco, para que não pensasse que eu tinha pena dela, pois tinha em verdade gratidão, tinha em verdade, admiração.
Ela sofria e não mentia, ela se assumira e por isso a sociedade hipócrita não lhe dava um lugar. 
Somente o olho que tudo vê, no De Gaulle, lhe permitia aquela ilha de sossego. 
Talvez o olho tivesse naquele turno, um operador cujo irmão tivesse se extraviado pelas ruas de Paris, após a regeição da família ante a revelação da homossexualidade. 
Ao sair do banheiro percebi que estava perdida no De Gaulle, e inclusive perdera meu vôo.

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